A peça “O Bosque dos Sonâmbulos”, apresentado no Teatro Viradalata sob a precisa direção de Matheus Marchetti, que também assina o roteiro, é um dos melhores musicais produzidos no ano. Com uma premissa simples, um grupo de artistas que se apresenta em um antigo hotel nas montanhas e convida os hóspedes para conhecer as aventuras noturnas, o roteiro articula três temas: os mistérios da noite, o romance LGBTQIAP+ e as narrativas de horror vampirescas. A estética queer escapa do estereótipo, conferindo à peça uma representatividade significativa.
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A narrativa acompanha a história de Oliver, que vê seu irmão mais velho Thomas se apaixonar por Roman, artista de um estranho grupo de teatro que se apresenta no hotel em que estão. Enquanto a história se desdobra, é revelado que esse grupo é formado por vampiros, o que traz a estética do horror à trama, ao mesmo tempo que instiga o público a saber o que vai acontecer com Oliver e sua família.
Embora pareça ter um fluxo linear, a peça alterna momentos do presente, com Oliver adulto relatando a sua companheira os estranhos acontecimentos que vivenciou em sua infância, e do passado, quando vemos esses acontecimentos. Da tensão entre o passado e o presente, ressaltada pela trama e pelo próprio Oliver, que se torna escritor quando vira adulto, fator que insere a memória dele em um possível plano fictício, coloca-se em questão se o passado era real ou apenas fruto da imaginação de uma criança para lidar com o trauma da morte do irmão. Esse plano alternante da memória ganha mais destaque ao deslocar para o passado uma maior importância narrativa, elaborando uma estética onírica, fantasiosa, relacionada diretamente ao sonho, algo bem captado e construído visualmente pela direção de arte.
Apesar da peça tornar explícito a alternância entre presente e passado, ela não faz o mesmo em relação ao tempo histórico, de modo que não fica claro de quais períodos estamos falando para nos situarmos no tempo. Ainda assim, a ambientação do mundo gótico associado ao noturno parece responder a seguinte pergunta que inicia a obra Frankenstein: “O que poderá deter o coração determinado e o desejo resoluto de um homem?” (SHELLEY, 2015, p. 80).
Nesse sentido, a cenografia simples, com poucos recursos materiais – algumas cadeiras, um caixão com rodas que se arrastam e vestidos pendurados no teto –, caminha bem como proposta de artefatos da memória, cuja prevalência se dá mais pela causalidade dos fatos do que propriamente pelos objetos que os cercam. Embora o roteiro construa esse movimento alternante entre castelo e bosque, uma proposta presente também no teatro cômico shakespeariano onde as personagens começam no primeiro e terminam transformadas no segundo, os locais do drama não ficam claros em um número razoável de cenas, precisando do contexto para sua maior compreensão. Uma alternativa possível seria um melhor investimento no cenário ou pensar outros recursos que não o texto para criar a ambientação desejada para a cena.
O elemento visual com maior destaque é a iluminação, cujo projeto bem executado conta com a assinatura de Ariel Rodrigues. As diversas luzes conseguem criar a atmosfera gótica e queer desde antes do início até o fim do espetáculo. Através de um jogo de cores e sombras, conjugadas com a máquina de gelo seco e fumaça, cada parte das cenas é regida com requinte, ora suave e sedutora, ora intensa e misteriosa, refletindo perfeitamente a dualidade humana, tendo em vista um número significativo de personagens ter algum grau de profundidade.
A peça possui dois núcleos distintos de personagens, o primeiro é familiar, composto por Oliver e seu irmão Thomas e seus pais Mariana e General. Entre eles, a relação entre os três primeiros é próxima, afetiva e feliz, mas se encontram todos submetidos ao conservadorismo e distanciamento do último. Tal comportamento do General impõe os conflitos da família, seja pela homofobia com Thomas, seja pelo tratamento machista com a esposa. O segundo núcleo é formado pelos vampiros Roman, Irene, Eva, Antonia e Tonino, que entram em oposição direta ao Barão, vampiro mais antigo e territorialista. Os vampiros violam a natureza e podem ser compreendidos na peça como uma realização cênica do infamiliar freudiano, Das Unheimliche, que se refere àquilo que é assustador justamente por ser-nos familiar, mas que não conseguimos identificar a origem dessa familiaridade e que “deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu” (FREUD, 2010).
A estrutura relacional entre esses dois núcleos trabalha com os desejos do núcleo familiar, à exceção do General, que só podem ser realizados pelas criaturas da noite. Embora alguns personagens tenham alguns conflitos internos, o tema de maior tensão para ambos os núcleos é a paixão e o desejo sexual despertado entre Roman e Thomas, principal elemento para a narrativa existir.
O elenco é composto por um grupo experiente e talentoso, não existindo nenhuma atuação superficial, estereotipada ou mal trabalhada. Delas, a atuação de Lucas Bocalon como Oliver é tão real e convincente, que ela por si só é digna de aplausos. É raro encontrar atores no início de carreira que entreguem uma performance talentosa, límpida e impecável, o que Lucas no premiou na noite em que assistimos.
Todos os acontecimentos, motivados direta ou indiretamente com o desejo sexual, proporcionam a transgressão do modo de ser social para os personagens, o que implica para cada contexto cênico apresentado um novo olhar sobre o próprio corpo e seus prazeres. Estes tornam-se objetos fundamentais de uma confissão há muito reprimida pelos personagens, que se não fosse partilhada em uma narrativa de memória e o público assistisse, não seriam revelados em nenhum outro contexto.
Dessa forma, a narração de Oliver adulto no presente, em relação aos diálogos motivados pelos desejos e descobertas dos demais personagens, realça a condição humana do desconhecimento sobre a própria vida e das pessoas que por ela transitam. Afinal, como lidar com um pai repressor, uma mãe reprimida e um irmão morto? É como se apenas o mundo onírico e a organização das emoções do narrador-personagem embalasse e justificasse os acontecimentos do bosque, servindo, portanto, de fundo à verdade inconfessável e perturbadora – o horror monstruoso que a noite suscita. Diante disso, nos instantes finais o público pode voltar a questionar a verdade sobre o que acabou de observar, isto é, se é apenas uma memória imaginativa de vampiros ou não, o que a cena final revelará através de um plot twist.
Todo esse espetáculo parte da dramaturgia e direção de Matheus Marchetti, cujas mãos mágicas e habilidosas conduziram o elenco de forma magistral e proporcionaram, sem sombra de dúvidas, uma das melhores experiências em teatro musical do ano. As cenas precisamente construídas e a coordenação de elementos como a iluminação, a sonoplastia exemplar, eleva a peça a um patamar de excelência.
Em um mundo onde o teatro musical é visto apenas como uma máquina de dinheiro, em que temas sociais surgem somente como mero adorno, Matheus consegue entregar com distinção um musical finamente trabalhado, e ainda que tenha utilizado um lugar comum – o filho reprimido pelo pai que vive escondido seu romance homoerótico –, o faz sem recorrer às pautas da comunidade LGBTQIAP+ utilizando estereótipos, sem superficialidades e levando com seriedade a conjugação de todos os elementos supracitados.
Por fim, a todo o trabalho elaborado no espetáculo, a conjugação “mistérios da noite”, “romance gay” e “narrativa de horror vampiresca” permeia a consistência singular do enredo, além do fato da estrutura teatral corroborar com a universalização dos significados desses elementos. Através dele, é destacável o alcance do horror estético da obra de Matheus, o que o associa, indubitavelmente, aos grandes roteiristas e artistas da corrente subterrânea coletiva do teatro e facilita a entrada do público no oculto da horripilante condição humana.
O curta que originou a peça pode ser conferido abaixo:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Tradução de Paulo César de Souza.
SHELLEY, Mary. Frankenstein: ou o prometeu moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015. Tradução de Christian Schwartz. (Edição Kindle)

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