A peça Kafka e a Boneca Viajante, cuja direção recaiu com louvores na mão de João Fonseca e o texto do espanhol Jordi Sierra I Fabra foi transformado magicamente em dramaturgia por Rafael Primot, esteve em cartaz no Teatro Villa Lobos em uma curta temporada, mas tempo o suficiente para ser considerada uma obra-prima do teatro paulistano desse ano. Não existe na peça nenhuma cena que passe sem evocar no público ao menos um sentimento de compaixão ou uma gargalhada, em que esse “ou” é mediado por um elenco consciente do próprio trabalho teatral. Cada um dos oitenta minutos do espetáculo é um deleite.
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Adaptando o livro em sua integralidade para os palcos, a narrativa acompanha as últimas semanas da vida de um desiludido Franz Kafka em 1924, quando está passeando pelo parque Steglitz e encontra uma menina, Rita (Elsi no texto original) chorando. Movido pela curiosidade, se apresenta para ela como senhor K e pergunta o porquê do choro, ao que a garota responde ser motivado por ter perdido sua boneca Brígida. Comovido com a profunda tristeza da criança, Kafka diz que é um carteiro de bonecas e que tem uma carta justamente de Brígida para entregar para Rita no dia seguinte. Daí em diante, durante três semanas, sofrendo pela tuberculose, mas apoiado pela companheira Dora, Kafka vai tecendo histórias ao redor do mundo que no palco são narradas pela boca da própria boneca.
Grande parte da ação dramática se concentra no parque Steglitz, representado em cena por um banco, e uma outra parte no escritório de Kafka, com muitas cartas no chão. Os lugares em que Brígida está são trazidos à cena pelas músicas e figurinos, o que elabora um espaço imaterial misto entre a ambientação e sonoplastia. Ao considerarmos que Brígida não deveria aparecer, é muito criativa a integração espacial que surge por meio das cartas que ela envia, configurando a atriz como uma presença ausente.
A direção musical de Tony Lucchesi é mais do que um acerto. A composição da trilha sonora é genial, de modo que as músicas se movimentam precisamente no texto, posicionadas nos lugares certos, em contextos ideais e conduzem as emoções dos personagens e do público ao apogeu estético do começo ao final da peça.
Para além de um texto e músicas excelentes, a composição do elenco é outro grande primor da peça. Alessandra Maestrini (Brígida), André Dias (Kafka), Carol Garcia (Rita) e Lilian Valeska (Dora) têm uma profunda compreensão de seus personagens e os interpretam perfeitamente, como se observa nas expressões corporais de uma boneca, na voz e trejeitos de uma criança, no rosto cansado e deprimido de um escritor e na gentileza e otimismo de sua companheira. Não há uma hierarquia dramática entre os personagens e atores e é a partir desse mesmo patamar que eles não se prendem ao texto: fazem piadas sobre seus personagens, sobre si mesmos, sobre o levar ao teatro à nível de brincadeira e qualidade. Alessandra Maestrini, por exemplo, em dado momento imita sua célebre personagem Bozena (Toma lá, dá cá) provocando o riso geral da plateia. Em uma cena em que é falado sobre imaginar e a pessoa responde algo como “não consigo fazer de conta”, Lilian comenta “Se eu posso ser uma gaivota, você pode ser qualquer coisa”, provocando outra onda de riso. É sobretudo na leveza em tratar temas delicados que o elenco leva ao público tanta qualidade no trabalho.
O encontro de duas pessoas que vivenciam alguma perda sempre é um processo delicado de elaboração. Kafka está doente, desencantado e sem inspiração para escrever, enfrentando uma profunda depressão. Rita perdeu materialmente sua boneca Brígida e vivencia, ainda criança, uma forma de luto. A ligação de ambos os personagens com a escrita e seu brinquedo, respectivamente, são constitutivos de suas identidades e afetos, de modo que a perda, material ou não, abala as emoções dos personagens e as próprias percepções de si mesmos. Assim, a perda do objeto se transformou em perda de si e o conflito entre o eu e o objeto amado ausente intensifica o sentimento de tristeza que domina os personagens.
Qual a saída para essa tristeza? Olhar ao redor e estar aberto à compaixão, de modo que nas três semanas de entrega de carta, há para ambos os personagens um novo objeto de afeto e uma cura do sentimento de perda no outro: Kafka volta a escrever e Rita ganha uma nova boneca.
Em sua breve temporada no Teatro Villa Lobos, Kafka e a Boneca Viajante fez com que o riso coexista harmoniosamente com a reflexão sobre perda e superação. A tristeza é enfrentada com compaixão, revelando que, por meio do olhar atento e da abertura ao outro, é possível encontrar cura e renovação.

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