Reflexivo e hipnotizante
A cada ano o cinema mundial nos apresenta uma quantidade exorbitante de filmes diferenciados. Dentro dos diversos gêneros existentes, encontramos criações para todos os tipos e gostos. Grande parte desses projetos servem para movimentar a máquina do mercado industrial cinematográfico, todavia também não é difícil escavarmos pequenas pérolas perdidas no fundo desse oceano repleto de produtos desnecessários. Algumas dessas chegam de fininho, nem mesmo conseguem entrar para o patamar das grandes produções, em relação a verba de orçamento ou até mesmo a bilheteria alcançada, mas atingem em cheio quando exibidas em festivais e/ou ganham proporções gigantescas através do famoso boca a boca até o dia seu lançamento. Com isso, é só uma questão de tempo para ganharem quem realmente precisa ser conquistado: o público.
Uma narrativa original e bem construída, um trabalho excepcional dos atores ou uma cinematografia definida corretamente, são alguns dos pontos que ajudam fazer essa diferença, transformando um projeto comum em algo extraordinário. Sem contar que determinadas obras ainda conseguem discutir assuntos intensos, bastante relevantes para sociedade, necessários para tocar feridas que precisam de atenção. E isso é algo que também ajuda na hora de realizar uma produção sucesso. A mais nova prova disso é o surpreendente “Corra!”, que estreou hoje nos cinemas de todo Brasil.
Através de um premissa despretenciosa, acompanhamos o talentoso fotógrafo Chris Washington e sua namorada Rose Armitage para um fim de semana na casa dos pais dela. Mas acontece que Chris, por ser negro, fica em dúvida em conhecer repentinamente a família de Rose. Pelo simples fato deles serem brancos e viverem em uma comunidade praticamente toda branca. Não obstante, sua namorada deixa claro o orgulho de fazer parte de uma família não-racista, convencendo-o de que a viagem será perfeita para passarem um momento em família. Todavia, ao chegar no local, o fotógrafo estranha a atmosfera da redondeza, tentando entender o que está acontecendo com alguns moradores do subúrbio.
A produção envolve mais de uma dezena de nomes na lista dos produtores responsáveis pela obra, entre eles Jason Blum (“Wiplash” e “Fragmentado”) e Shaun Redick (“Cães Selvagens” e “Band Aid”), esses acostumados com cinema independente. Com um orçamento de 5 milhões de dólares, valor considerado pequeno dentro dos padrões hollywoodianos, os responsáveis pelo filme conseguiram fazer um verdadeiro milagre sem deixar perder a qualidade do projeto.
O roteiro é um achado! Assinado pelo comediante Jordan Peele, muitos ficaram em dúvida de sua capacidade na incursão desse novo gênero. Entretanto, o roteirista consegue equilibrar perfeitamente a tensão explorada em grande parte da trama com pitadas de humor que, embora faça o espectador rir como descontração, servem também como reflexão sobre os assuntos importantes ali levantados. É uma narrativa mirabolante, quase surreal, bem definida em todos os seus arcos e ínterins. O texto debate de forma satírica as atitudes da sociedade, abordando o preconceito racial de forma explícita, com diálogos diretos, capazes de ampliar o assunto até o ponto necessário, não perdendo tempo com exageros. Sem contar, que o roteirista consegue trabalhar o bizarro de forma inteligente e elegante, com reviravoltas rocambolescas que prendem a atenção até um final sensacional. Algo que já apreciamos em trabalhos do mestre David Lynch, mas Peele consegue brincar com certas características marcando aqui sua própria assinatura.
Jordan Peele também assina a direção, e com sabedoria. Ele consegue nos entregar um filme angustiante, no qual a claustrofobia toma conta do espectador em cada instante. O trabalho psicológico desenvolvido por ele, através de certos enquadramentos e ângulos capazes de causar até mesmo um forte náusea, engrandece a obra consideravelmente. Não é difícil você sentir, a cada sequência do filme, um crescimento de ritmo. Organicamente, ele consegue passear entre alguns momentos tranquilos e outros de total frenesi, sem perder estrutura visceral da obra.
Toby Oliver, responsável pela fotografia de vários outros filmes de terror, é outro que consegue impressionar com uma atmosfera modorrenta. Trabalhada através de paletas azuis e um degradê de cinza, somos lançados a um ambiente sereno que desperta certo calafrio. A todo segundo, temos a impressão de que aquele lugar pacato esconde algo muito tenebroso. A direção de arte de Chris Craine e figurino de Nadine Haders também ajudam bastante nesse ponto, criando um contraste entre o pastel que introduz certa normalidade e o vermelho que instiga a atenção do espectador para diversos pontos. Porém, diferente do roteiro e direção, eles não evoluem com a trama, estacionando logo no segundo ato. O que fica um pouco a desejar.
O mesmo acontece com parte do elenco. Enquanto Daniel Kaluuya nos entrega um ótimo trabalho, a altura do que já havia feito com um personagem parecido em “Black Mirror”, desenvolvido através de olhares e percepções ponderadas; e a “novata” Allison Williams também nos conquista a cada cena, ao dar vida a ótima Rose Armitage; o resto do elenco não consegue se manter no mesmo patamar. Bradley Whitford e Catherine Keener até se esforçam para um trabalho convincente, mas deixam a desejar em algumas cenas que acabam pendendo para o caricato. Já Caleb Landry Jones, é a grande decepção. Com uma construção forçada, seu personagem nos leva a pensar que se fosse retirado não faria nenhuma diferença para o filme. Em compensação, Marcus Henderson e Betty Gabriel estão ótimos como os empregados dos Armitage’s.
Outro diferencial para a produção é a provocante e estridente trilha sonora criada pelo estreante Michael Abels. Ela é a responsável por unificar o terror, o drama e a comédia, mantendo intacta toda a cadência do enredo.
Com mais de 200 milhões de faturamento até o momento, “Corra!” é um fenômeno que te atinge no peito e na cara. No primeiro ato, quem não conhece mais sobre a produção pode até achar que o filme será mais um do mesmo (um casal comum que vai passar por maus bocados no fim de semana), porém no decorrer da projeção vamos encontrando artifícios que nos deixam intrigados, com os olhos estatelados na tela, de uma forma que é impossível querermos levantar da cadeira. Um filme que precisa ser visto.
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