“2018 e ainda estamos na Idade das Trevas na Macedônia. Deve ser por isso que chamam nosso país de ‘eterno’”
Essa afirmação é a síntese perfeita da crítica feita pela diretora Teona Strugar Mitevska em seu novo filme, “Deus É Mulher e Seu Nome É Petúnia”. Não à toa, ela é proferida pela jornalista Slavica (Labina Mitevska), uma das poucas pessoas a defender as ações da protagonista que dá nome ao longa. Em poucas palavras, a personagem expõe o óbvio: não só a Macedônia é um país extremamente machista e conservador, como também não há nenhuma perspectiva de mudança em um futuro próximo, uma vez que esse tipo de comportamento é passado de geração em geração como se fosse algo natural, ou até mesmo vontade divina.
Como forma de representar a disrupção provocada por Petúnia (Zorica Nusheva), a diretora abre o longa com um plano da protagonista no centro de uma piscina vazia. Aos poucos, sobe na trilha sonora um rock pesado, enquanto a personagem permanece imóvel. Assim, em poucos segundos, Petúnia é apresentada como um Jesus contemporâneo, caminhando serena sobre as águas ao mesmo tempo em que o mundo à sua volta entra em colapso ao se ver ameaçado por sua presença.
Gorda, desempregada e sem namorado, Petúnia encontra-se bastante infeliz aos 32 anos, sendo constantemente maltratada e menosprezada pela sociedade. Dentro de casa, sua mãe aponta inúmeros defeitos, deixando explícitas todas as frustrações que ela lhe causa. Numa entrevista de emprego, é humilhada pelo gerente da empresa e, ao ser assediada por ele, ao invés de resistir, prefere o estimular, numa tentativa desesperada de se sentir desejada (mesmo que em uma situação tóxica). Logo, não é de se espantar que, durante uma procissão, Petúnia decida finalmente quebrar as regras e tentar encontrar a felicidade por conta própria: ao impulsivamente participar de um ritual religioso reservado apenas aos homens – no qual eles disputam uma cruz de madeira jogada em um rio – e dele sair vitoriosa, a protagonista, pela primeira vez em muito tempo, se sente realizada; mas também desperta a ira da cidadezinha em que mora, onde o valor das tradições é maior do que qualquer senso de justiça.
Entretanto, mais do que a questão religiosa de seu ato, a maior “ofensa” de Petúnia é confrontar o patriarcado que comanda as relações sociais do local. Pouco importa para os homens o valor simbólico por trás da captura da tal cruz; para eles, é tudo uma questão de competição pura e simples. Quem atinge o objetivo é o mais macho e poderoso do bando, é aquele mais respeitado, é aquele que se gaba de suas glórias na mesa de bar. Portanto, quando uma mulher vence a competição não é apenas uma discussão sobre quebrar as regras do ritual ou não, mas sim sobre a emasculação de todo um grupo de homens. Assim, a cruz é menos um símbolo religioso do que um objeto fálico: ao capturá-la e se recusar a devolvê-la, Petúnia basicamente segura os homens “pelas bolas” – e nisso se incluem as lideranças religiosas, também masculinas. Como diz o padre a certa altura do filme: “todos sabem que só homens podem participar”.
Nesse sentido, é interessante observar como a diretora filma os diálogos entre a protagonista e os homens. A já citada entrevista de emprego, por exemplo, ocorre dentro de uma sala de vidro no centro de uma manufatura têxtil; enquanto isso, o interrogatório entre Petúnia e Vasko (Nikola Kumev), um policial mais velho, é enquadrado de fora da sala, a partir de uma parede de vidro. Em ambos os casos, Strugar Mitevska assemelha os cômodos a jaulas, na qual presa e predador se confrontam. Em contrapartida, ao filmar uma das conversas entre Petúnia e o jovem oficial Darko (Stefan Vujisic), a diretora inicialmente os separa por uma porta de vidro até que, progressivamente, as duas personagens se aproximam e dão as mãos, remetendo a um ritual de acasalamento.
O corpo feminino também é utilizado como forma de aprofundar o debate acerca das diferentes expectativas sociais impostas a homens e mulheres. Numa das primeiras cenas do longa, Petúnia, ao se olhar nua no espelho, comenta que se pudesse, nunca usaria roupas, pois se sente confortável sem elas. Logo em seguida, ela é repreendida por sua mãe, em mais uma de suas “patadas”. Esse momento encontra reverberações em outras duas instâncias no filme: a primeira, na procissão, quando dezenas de homens descamisados (de diferentes tipos físicos) não só competem, como também são observados com entusiasmo pelo público; e a segunda, quando Petúnia deita nua sobre sua cama com a cruz repousada em seu peito. Há, portanto, um processo de aceitação da protagonista em relação a seu corpo: a repressão por querer andar sem roupas; o confronto com os homens, que podem andar tranquilamente de peito nu; o reconhecimento do corpo feminino, com todas as suas imperfeições, como algo sagrado. Assim, não só Petúnia vê-se mais à vontade em não seguir tendências estéticas (para ir buscar a cruz dentro d’água, ela larga o manequim que estava carregando), como também faz uso dos próprios objetos de repressão como arma de combate (o uso do mesmo vestido tanto para a entrevista de emprego, como para o interrogatório na delegacia).
Ancorado em uma ótima performance de Zorica Nusheva, “Deus É Mulher e Seu Nome É Petúnia” poderia ter sido, nas mãos erradas, apenas mais um caso de misery porn, em que as desgraças da vida da protagonista são exploradas ao ponto do fetiche. Todavia, Teona Strugar Mitevska e a co-roteirista Elma Tataragic conseguem, em seu lugar, construir uma envolvente e simpática (ainda que séria) história de aceitação pessoal. Nem tudo funciona – às vezes o ritmo vacila, alguns detalhes do plot da jornalista soam forçados -, mas não é nada que impeça o longa de ser bem-sucedido.
Imagens e vídeo: Divulgação/Pandora Filmes
Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.