A transposição de um texto narrativo para a dramaturgia não é uma tarefa fácil. Tendo em vista que implica um trabalho atento do roteirista com o texto-base para uma linguagem da qual este não foi pensado, uma dificuldade é a escolha do grau de fidelidade que se manterá da obra, sendo preciso saber replicar ou recriar, no sentido criativo do texto, a estrutura do livro. Diante disso, transpor Dom Quixote para o palco não é um empreendimento simples, dada a longa extensão da obra, os diversos gêneros narrativos que o seu autor, Miguel de Cervantes, experimenta no livro e, em especial, um personagem que atravessa séculos no imaginário coletivo – Dom Quixote é um mito contemporâneo –, o que exige um respeito com a obra e seu público, além de um cuidado para não cair no ridículo.
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A Cia Um alcançou uma alta qualidade de adaptação do personagem e sua história, mantendo a fidelidade a tudo o que foi exposto acima, e conseguiu explorar bem as sinuosidades da obra em sua prática teatral, levando a uma exaltação mística todo o texto cervantino. Isso demonstra que a repercussão da peça no público não dependeu apenas da história ter sido bem contada, mas do modo como foi contada.
O primeiro campo da adaptação entre a narrativa e o ato dramático foi a escolha da temporalidade da peça. Dom Quixote é um livro dividido em duas partes e a estrutura da primeira é composta por episódios avulsos, sem causalidade, onde o único fio condutor é o protagonista e seu companheiro, Sancho Pança. Isso permite que cada episódio seja lido de forma independente, tal como uma coletânea de contos, nas quais o leitor acompanha as aventuras de Dom Quixote. Essa estrutura foi mantida na peça da Cia Um, o que permitiu a escolha de alguns episódios da história para reordená-los em um todo coeso e constituir uma narrativa própria para uma hora de duração.
A peça inicia apresentando um senhor em um quarto de hospício, cujas paredes são forradas com páginas de livros e sua cama possui livros ao invés de um colchão. Ele brinca como cavaleiro até a entrada de um enfermeiro, que posteriormente nos informa que o senhor enlouqueceu devido à constante leitura, e que se hoje ele escolheu ser Dom Quixote, em dias anteriores tinha escolhido ser um pirata.
Essa abertura é muito importante, pois contextualiza o traço principal de Quixote – personagem que enlouquece por tanto ler –, mas que já o separa temporalmente do que veremos, dado que a peça se passa nos dias atuais, de modo que o público assistirá um paciente que acha que é um louco. Diante desse paralelo, o texto reforça que a peça é uma adaptação e que parte paralelamente à obra, do contato entre Dom Quixote, o paciente do hospício, com Sancho Pança, o enfermeiro. Esse jogo de temporalidades, passado cervantino evocado pelo livro clássico e presente contemporâneo retratado pelos dias atuais, é o eixo de articulação que a Cia Um introduz em sua adaptação.
Tendo em vista os recortes de episódios que o grupo elegeu com o eixo de articulação apresentado, o roteiro adapta muitos momentos do original de maneira fiel a como seria nos dias atuais. Dessa forma, para um leitor do livro, diversas cenas são reconhecíveis, como a que Quixote salva um garoto do trabalho exploratório de um senhor, a presença de Dulcineia etc. Mesmo para um curioso que venha a ler o livro depois, esse reconhecimento surgiria. O texto é criativo no sentido das adaptações e denúncias a eventos dos dias atuais que faz.
A escolha dos trechos adaptados possui uma extensão curta no palco, mas cada qual enfatiza a mesa de trocas que cada personagem que interage com Quixote passa. Na cena do garoto que apanha do velho, por exemplo, após o protagonista oferecer um mundo de sonhos à criança, uma brincadeira em um cavalo de pau que aos olhos de Quixote é um belo alazão, o garoto agradece por ter saído da realidade, mas diz que precisa voltar pra ela pois tem de trabalhar para cuidar dos seus irmãos, o que marca a denúncia do trabalho infantil.
A mesa de trocas se constitui, assim, de Quixote oferecendo sonho e esperança e recebendo de volta a dureza que é a realidade na qual vivemos cotidianamente. Essa escolha do roteiro difere do livro, pois nele o cavaleiro da triste figura é constantemente humilhado, apanha e é caçoado pelas pessoas com as quais interage.
A peça começa e termina no hospício, e vemos como o retorno de cada personagem os transformou, o que a adorna com uma estrutura circular de herói que finaliza a jornada modificado para melhor.
A percepção da passagem do tempo é marcada pelo fim de cada um dos episódios que assistimos, acompanhadas por sonoridades e corporeidades que ocorrem na dramatização. A escolha de privilegiar o tempo presente interfere na recepção da obra, pois o grupo não partiu da ideia de que quem foi assistir já conhecia ou não o texto original e nem deixa pontas soltas para imaginar o que acontece depois que as cortinas se fecham. Dom Quixote é, dessa forma, um acontecimento teatral experimentado.
Outro campo de adaptação da peça foi a espacialidade, cuja cenografia foi pensada por Julia Armentano e Maira de Benedetto. Como dito anteriormente, a peça inicia e termina em um hospício, mas as aventuras dos personagens se concentram no mundo da cidade, que é apenas mencionada em alguns momentos. Lugares mais precisos são construídos com a inserção de alguns outros elementos e são sempre relacionados com cada episódio da peça, como a mesa de bar quando se apresenta Dulcineia. Os elementos materiais são de fácil deslocamento e vêm ao jogo cênico enquanto acompanhamos os diversos cenários projetados por um projetor com gravuras típicas de Dom Quixote. Nesse sentido, o cenário é sempre alternante e caminha com os episódios de aventura.
As páginas espalhadas nas paredes e a cama do personagem que acredita ser Dom Quixote são constituídas por livros. Essa estrutura é muito importante, pois não apenas reforça o constante hábito de leitura da personagem, tal como ocorre também no texto original de Dom Quixote, como também lembra o espectador de que o que ocorre no palco – personagens em torno de livros – é uma adaptação literária, como se o livro de Cervantes caísse de uma prateleira nos dias de hoje e de lá saíssem o que o público está assistindo.
Algo que parece não caminhar tão consonante à peça foi o trabalho de iluminação, que não tem uma proposta clara em algumas cenas, como a da dança de Dulcineia, cuja escolha foi por baixa iluminação, por exemplo. Contudo, o desenho da luz foi primordial para trabalhar o tom da aurora e o final da peça, quando o enfermeiro, inspirado pelo paciente, começa a ler, o que simboliza sua abertura ao mundo da imaginação e o fechamento do livro-peça que nos foi apresentado.
A peça trabalha os personagens em dois planos, o do mundo real e o do imaginário. O primeiro é simbolizado pelo paciente e o enfermeiro, bem como os outros enfermeiros que aparecem ao final da história, o que estabelece a relação no plano médico. Já no segundo, há uma conversão do paciente em cavaleiro andante e o do enfermeiro em escudeiro, respectivamente Dom Quixote e Sancho, e todos os outros personagens que aparecem ao longo da peça são uma amálgama entre esses dois mundos, pois são seres humanos em seus territórios, mas adaptados pela imaginação ao universo da cavalaria. Esse jogo entre o real e o imaginário é o mesmo que ocorre na obra cervantina, de modo que o grupo selecionou alguns personagens do livro e não incluiu, salvo os enfermeiros que aparecem ao final da peça, personagens novos.
A relação hierárquica do paciente e do enfermeiro no mundo real concede mais poder ao último e menos ao primeiro. No mundo imaginário, ocorre o oposto. Na relação de Dom Quixote com os personagens que encontra, a hierarquia sempre se alterna com predomínio do real em detrimento do imaginário. Ao final da peça, a relação entre o paciente e o enfermeiro, ainda que mantenha no plano médico a mesma hierarquia, no campo afetivo se converte em uma amizade significativa, construída ao longo das cenas, tal como ocorre com Quixote e Sancho.
O roteiro no plano imaginativo e estrutural é muito rente ao texto literário, adaptando-o apenas aos dias de hoje e ao contexto do hospício, não havendo muita distinção entre eles. Algo que é outro grande acerto na adaptação diz respeito às constantes citações de livros que o paciente faz, passando por grandes nomes como Nietzche e Gonçalves Dias, por exemplo, o que reforça o aspecto de leitor que é Dom Quixote. Muitas adaptações abandonam essa característica, mas Cervantes criou esse universo como uma homenagem ao ato da escrita e da leitura.
Embora a peça seja baseada no jogo entre realidade e imaginação, o roteiro não dá conta, o tempo todo, de sua proposta em articular um jogo entre esses dois polos, ambos mediados pelo delírio de um paciente. Pensar Sancho como um enfermeiro, mas caracterizá-lo como analfabeto, por exemplo, é algo que não possui lógica.
Sem dúvida, Rodrigo Mercadante com sua atuação brilhante, deu vida ao icônico personagem de Dom Quixote de uma forma primorosa. Sua interpretação foi repleta de comicidade, mas aquela baseada na leveza, transmitindo com maestria a complexidade e a loucura do cavaleiro da triste figura. Rodrigo soube capturar a essência de Dom Quixote, tornando-o cativante e memorável para o espectador. Ele transmite o espírito do personagem e possui um ar de esperança no olhar, o que funciona muito bem para a proposta do roteiro. Seu talento é inquestionável.
A performance da atriz Angela Ribeiro no papel do enfermeiro/Sancho Pança foi excepcional, mesmo diante de um roteiro que não favoreceu muito o personagem. Sua atuação foi cativante e trouxe vida ao fiel companheiro de Dom Quixote, retratando sua lealdade e senso de humor. Seu talento apareceu mesmo em meio às adversidades, evidenciando sua versatilidade e profissionalismo.
Em tempo, cabe mencionar que os efeitos sonoros e a música são pertinentes, mas que no caso da última, por ser alta, abafava a fala dos personagens. Outro fator que afetou a experiência do público são as falas dos atores quando estes estão de costas para a plateia, pois não se ouvia com qualidade o que era dito.
Por fim, a adaptação teatral de Dom Quixote pela Cia Um demonstrou qualidade ao recriar os personagens e explorar as sinuosidades da obra de Cervantes. A escolha da temporalidade e a articulação entre passado e presente foram acertadas, oferecendo uma narrativa coesa em uma hora de duração.
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