Ao reservarmos o ingresso para uma peça de teatro, sabemos que ele traz consigo o pacto teatral, o acordo da dialética entre o real e o fictício, a separação entre a plateia e o palco. O que aconteceria se esse pacto se tornasse o modo de fazer teatral, ou melhor, um jogo teatral, cuja matéria é a imaginação? Essa é a premissa pela qual o grupo Barracão Cultural constrói, de maneira exemplar, sua peça, Jogos de imaginar, que estará em cartaz até o final de julho no Itaú Cultural.
Um garoto, Eulindo, interpretado pelo carismático Guilherme Wander, após ter a máscara de seu avô roubada, corre atrás do ladrão e vai parar no palco do Itaú Cultural, perguntando ao público se este viu o larápio. Eis que é interrompido por uma voz feminina, que chama a atenção do rapaz e o convida a conhecer, a partir da história do teatro, o modo de fazer teatral e a possibilidade de descobrir a história de seu avô para além da máscara.
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Esse início da peça introduz o público aos três pilares que a sustentam: a) o rompimento do frágil tecido entre palco/plateia, b) o teatro enquanto necessidade universal da humanidade que atravessa o tempo e o espaço; e c) o teatro enquanto território de questionamento de seu modo de fazer. Esses pilares não são fixos, mas fluidos e dinâmicos, de modo que se atravessam e se isolam em diversos momentos enquanto trabalham com a matéria da imaginação.
Em relação ao rompimento do tecido entre palco e plateia, cabe lembrar que, para o consagrado crítico Anatol Rosenfeld, o pronome que define o teatro é o “você”, pois o diálogo não é mediado por um narrador (ao menos não tradicionalmente) ou uma voz lírica solitária (os monólogos são uma exceção), mas pelo diálogo direto dos personagens no palco. Contudo, o que a peça se propõe não é um diálogo para o público assistir, nem tampouco sobre um tema, mas é a construção simultânea dessas duas coisas: a peça acontece com o público, que assiste, canta, interage, guia o protagonista, atua no palco com e como atores. Mais do que isso, a plateia física é inexistente, pois o público compõe a caixa cênica e a narrativa depende dele para existir, sendo, portanto, a peça do “nós”.
Aqui, cabe mencionar o excelente trabalho do diretor de arte, Eliseu Weide, pois o cenário colorido, dinâmico, sensível e composto majoritariamente de tecido, produzido pelo Atelier Bordel, me fez sentir a nostalgia de abrir um livro infantil, ao mesmo tempo que, antes da peça começar propriamente, senti vontade de ir ao palco mexer, brincar, sentir. Aliado a esse cenário, o trabalho com a iluminação realizado por Ayra Flores e Guilherme Bonfante, cujos adereços de luz foram confeccionados por Maurício Mateus e Tetê Ribeiro, são muito bem guiados e tão bem pensados em todos os momentos da história, que não tem como o público não se sentir ambientado nas diversas localidades as quais o enredo nos guia.
Quanto ao teatro na qualidade de necessidade universal da humanidade, cabe dizer que o enredo articula o passeio pela história do teatro, nos levando ao já consolidado dramaturgo inglês William Shakespeare, ao mundo trágico grego a partir de uma breve menção sobre Antígona, ao teatro Nô japonês e ao teatro itinerante da Commedia dell’arte, com a busca de Eulindo pela máscara, único contato material que possui com o avô. Essa articulação é interessante, mas pensando em termos de fundo e figura, a história do teatro ganha mais destaque, enquanto a busca do rapaz, faísca necessária para o enredo ter um motivo de existência, assume o fundo, o que torna a dramaturgia de Lucas Moura relativamente descompassada, mas salva pela direção espetacular de Thaís Medeiros, que conduz o espetáculo com uma leveza e precisão exemplares nos cerca de 60 minutos que ela dura.
Acerca do trabalho dos atores Guilherme Wander (Eulindo) e Caio Teixeira (múltiplos personagens), não há como não se encantar. Existe uma sincronia tangível entre os atores nas diversas interações do personagem fixo Eulindo com o múltiplos personagens que Caio vive. O primeiro nos cativa pelo carisma indiscutível, enquanto o segundo, ao viver diversos personagens, demonstra um talento colossal na encarnação de diversas personalidades distintas, profundas e multifacetadas, algo raro de se notar mesmo em atores que já possuem uma carreira extensa. Um dos recursos que corrobora com esses talentos, é o figurino de ambos os personagens, também confeccionado pelo Atelier Bordel, de modo similar ao do palco. As músicas assinadas por Morris são entoadas melodicamente pelos atores e são contagiantes, além de se encaixarem perfeitamente no momento em que aparecem.
Por fim, o último pilar, que entende o teatro enquanto território de questionamento de seu modo de fazer, se forja a partir do cruzamento dos pilares anteriores, pois não pauta o teatro apenas no território eurocêntrico de produção, nem em sua origem, nem em sua técnica, mas na contribuição articulada da cultura europeia, africana e dos povos originários, demonstrando como cada uma contribui nessa arte que está constantemente se fazendo. Esse aspecto percebe-se na menção ao Abdias do Nascimento, na importância inquestionável que a figura do griô assume no desenvolvimento da imaginação e, sobretudo, na presença de dois atores negros estarem trazendo todo esse repertório no palco e no corpo, uma vez que a profissão ator é formada por uma corrente ancestral, que pode e deve ser questionada e trabalhada enquanto o fazer teatral se desenvolve.
Concluindo, saí da peça com o desejo de vê-la novamente em seguida, e pretendo revê-la o quanto antes e mais de uma vez. A peça é uma explosão de emoções para os amantes de teatro e mal posso esperar para conhecer os outros trabalhos do Barracão Cultural, grupo que promete muito nos próximos anos. Evoé.
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