Lisbela e o prisioneiro é uma peça de teatro escrita por Osman Lins publicada em 1964, ano do golpe militar. O texto dá forma dramática ao movimento coronelista que atinge o interior nordestino através de personagens típicos, como o coronel, o vagabundo etc., recorrendo ao humor como recurso para criticar o autoritarismo. Em 2003, a peça ganhou um filme sob direção de Guel Arraes que manteve a estrutura, mas esvaziou o significado da peça original. A versão na linguagem de musical de Lucas Fioranelli transitou pelo mesmo caminho.
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A peça começa em uma prisão em Pernambuco, onde Leléu está detido por desonrar uma moça. Ele, um conquistador astuto, escapa da prisão novamente. Nessa fuga, Leléu salva a vida de um cangaceiro, Frederico Evandro e, no tempo desaparecido, o Tenente Guedes, pai de Lisbela, fica preocupado com a rebeldia de Leléu, especialmente porque sua filha está prestes a se casar com o advogado carioca Noêmio. Em sua volta à prisão, Leléu e Lisbela acabam se apaixonando à primeira vista, no molde dos romances clássicos. No final do primeiro ato, Frederico Evandro vai à delegacia e declara a Leléu que como ele lhe salvou a vida, ficará devendo um favor: matará quem ele pedir. No segundo ato, Leléu revela que deitou com uma moça chamada Inaura e é descoberto que o marido dela está indo para a cidade mata-lo. Na tensão criada, o delegado deseja facilitar a morte de Leléu, deixando a prisão aberta para que o assassino o mate, mesmo sob protestos da filha. Nesse contexto, o prisioneiro lembra do acordo com o cangaceiro e pede para que Frederico vá a delegacia para conversarem. Após explicar a situação e pedir o assassinato de seu algoz, é revelada a reviravolta da história: Frederico Evandro é o marido de Inaura e está ali para matar Leléu. O último ato traz a resolução dos conflitos, pois no momento em que o cangaceiro iria matar Leléu, ouve-se um som de tiro e Frederico cai morto no chão. É revelado que Lisbela atirou, e o tenente Guedes, surpreso, pede que ela fuja com Leléu, para não ter que prender a própria filha. Aqui insere-se uma nova reviravolta: quem atirou foi Inaura, para salvar a vida de Leléu, seu grande amor, mas, entendendo que ele e Lisbela devem ficar juntos, se suicida.
Como a peça se apoia no filme de 2003, muitos acontecimentos que são parte do extracena do roteiro original são trazidos ao palco, conforme a necessidade da adaptação. Dessa forma, a cena de Leléu de chamego com Inaura, que aqui é esposa e não irmã de Frederico Evandro, como no texto original, bem como outras cenas são levadas aos olhos do espectador, o que impacta diretamente no cenário.
A cenografia assinada por José Fernandes consegue dar conta dos diversos lugares narrativos, como a cadeia, o circo e a casa de Frederico Evandro. Embora a cenografia seja pensada a partir de objetos simples, como uma grade que representa a cela, um arco que funciona tanto como lona quanto como porta da casa do cangaceiro, etc., ainda assim consegue contornar com naturalidade e beleza todas as nuances da narrativa e ser muito bem conjugada com a iluminação.
Tendo em vista que a montagem se baseia muito no filme, o mesmo pode ser dito dos personagens. Há a supressão de dois soldados, Juvenal e Heliodoro, e a inclusão de três outros personagens, Francisquinha e Prazeres (ambas vivida por Laura Luiza), que não existem no texto original, e Inaura (Priscila Cammarosano), esposa de Frederico Evandro nessa montagem (igual ao filme) que é apenas mencionada no livro. Os demais personagens mantêm a essência prevista por Osman Lins, com apenas três alterações: Leléu não é apenas um prisioneiro e malandro, mas um faz tudo; o Dr. Noêmio, vegetariano no texto original, é transformado no personagem Douglas, um carioca; e o cabo Citonho não é um velho carcereiro, mas é interpretado por um ator bem jovem, o que não resultou em uma perda.
A hierarquia entre os personagens é apenas burocraticamente estabelecida, com o núcleo prisional cindido em duas partes: a “dentro-da-lei” composta pelo Tenente Guedes (Rodrigo Matos), Jaborandi (Mau Fiori) e cabo Citonho (Devi Cruz) e os “fora-da-lei”, Testa-Seca (Marcelo Cortez), Paraíba (Vinicius Salgueiro) e o malandro galanteador Leléu (Tainan Pongeluppe).
O núcleo feminino é criado pela estrutura do contraste. No texto original, Lisbela, a filha do tenente, é a única personagem feminina que vai para a cena, carregando consigo uma personalidade forte, sonhadora e determinada, resolvendo todos os conflitos do terceiro ato. A incorporação das personagens Inaura (Priscila Cammarosano), Francisquinha e Prazeres (Laura Luiza) serve para acentuar um contraste com a personalidade pueril e infantilizada de Lisbela (Clara Toscano).
Por fim, há o núcleo do acordo, formado pelo assassino profissional Frederico Evandro (Ali Baraúna) e pelo noivo sem vontade própria de Lisbela, Douglas (Vinicius Salgueiro), e que possuem três acordos que movimentam a narrativa: O primeiro é o de Frederico com Leléu, em que o cangaceiro promete matar alguém em nome de Leléu por este ter lhe salvado a vida; o segundo é o acordo nupcial de Douglas com Lisbela e o último é o forjado entre Douglas e Frederico sobre a morte de Leléu.
As relações entre esses núcleos são concentradas em si mesmas na maior parte das cenas e se entrelaçam apenas em relações familiares (casal ou parental) e amorosas (conjugal ou extraconjugal). Como a peça articula sua economia dramática para favorecer o ponto de vista de Leléu, ele é o único personagem que transita, através da malandragem, entre todos os núcleos. Essa transitoriedade estaciona apenas quando encontra Lisbela, outra personagem que transita entre os núcleos com certa resistência, mas que tem certo protagonismo. Da união dela com o prisioneiro, finaliza-se a peça e ocorre a finalização dos outros três núcleos, com saldo positivo para o casal.
De tudo isso é possível perceber que a montagem apresentada no Teatro Mooca nos dois meses foi muito baseada no filme, mas preservou, pela direção, uma especificidade dramática: a linguagem do teatro musical. A banda tocava a música ao vivo e era responsável pelos outros efeitos de sonoplastia, que foram bem dosados ao longo do espetáculo.
Ainda que a peça retire muito da potência do texto original, cujas discussões sufocam no subtexto, as atuações foram o fator essencial para avivar a narrativa. O grupo composto por atores e atrizes no começo de carreira demonstrou muito potencial de desenvolvimento artístico pessoal nos próximos anos, bem como a vivacidade e o prazer no trabalho que realizaram.
Narrativamente, a peça conta a história de um malandro que tem a sua vida mudada quando se apaixona e é correspondido, mas cuja vida anterior lhe cobra que assuma as responsabilidades por meio de uma ameaça de morte. Por outro lado, é também a história de uma moça que deseja a liberdade da vida que lhe foi imposta e só consegue isso através da vida conjugal com um prisioneiro. A construção do arco de Lisbela nessa peça (assim como no filme) é o esvaziamento de sua personalidade que fica dependente da persona de Leléu, bem diferente do que ocorre no livro, bem como a necessidade do esvaziamento da personalidade das mulheres do núcleo feminino que surgem como contraste e estereótipo das mulheres fogosas.
A peça se apresenta como um musical, gênero do teatro em que as músicas são responsáveis pelo andamento narrativo do espetáculo enunciadas pelos personagens. No entanto, essa montagem é um melodrama, pois utiliza personagens estereotipados que embaralham as regras sociais, em que todos os problemas apresentados são resolvidos por coincidências, não por atitudes dos personagens, e pelo uso da música na exploração dos acontecimentos da peça.
Por fim, a montagem de “Lisbela e o Prisioneiro” revela uma interessante conjunção entre a influência cinematográfica de 2003 e a especificidade dramática do melodrama. No entanto, a peça não escapa às críticas quanto ao esvaziamento do texto original, cujas discussões substanciais parecem sucumbir no subtexto. Apesar dessa lacuna, a montagem é bem-sucedida em proporcionar um agradável entretenimento, impulsionado pelo dinamismo das atuações e pela trilha sonora.
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