A crítica a seguir possui duas partes: Na primeira, ocorre a crítica tradicional à peça, com aspectos técnicos e a segunda, “A apropriação cultural e o whitewashing ainda deveriam ser aceitas no século XXI?”, tem um tom mais ensaístico, onde apresento os dois grandes problemas dessa produção.
Crítica: O Bem Amado Musicado
A notável produção de “O Bem Amado Musicado”, peça de Dias Gomes, para o teatro musical, mostrou-se uma adaptação interessante. A execução desse processo de tradução artística permitiu que se mantivesse o texto original quase intacto – mérito do roteirista e dramaturgo Elísio Lopes Jr. – ao mesmo tempo que o enriquece por meio das técnicas do teatro musical, como as performances musicais e as coreografias cativantes, respectivamente com letras de Zeca Baleiro e passos de Katia Barros e Tutu Morasi. A expressividade artística alcançada no palco do Teatro FAAP demonstrou-se um divertido acréscimo ao texto original.
Pode-se dizer que os acontecimentos do texto de Dias Gomes, escrito enquanto peça de teatro, foram mantidos quase integralmente, o que possibilita um contato mais direto do público com a trama que se desenvolve nos 110 minutos ininterruptos da peça. Entretanto, o abrir de cortinas introduz um coro, o que foi uma escolha estética interessante, pois é uma referência ao teatro grego clássico, cuja abertura apresenta ao espectador o tema que será tratado na peça – nesse caso, o direito à morte natural –, bem como a estrutura, que será de uma tragicomédia, nos mesmos moldes clássicos, recurso que Dias Gomes usou. Ainda, o coro clássico também cantava enquanto comentava os acontecimentos da peça, algo que também ocorreu com a atual montagem de Bem Amado, mas que soou mais próximo do teatro musical tradicional.
Odorico Paraguaçu, interpretado pelo talentosíssimo e divertidíssimo Cassio Scapin, um herói (ou anti-herói? Com certeza não é bem um vilão), é o personagem com maior ênfase na peça, tendo em vista ser o protagonista, que ao se eleger prefeito da fictícia Sucupira, no interior da Bahia, promete criar um cemitério para que os mortos sejam enterrados na própria cidade, não mais nas cidades vizinhas, como até então ocorria. Entretanto, após a construção do cemitério, nenhum cidadão morre durante os três anos da história, o que impede a inauguração do local e faz com que o carro-chefe da campanha de Odorico seja frustrado. Diante disso, sua legitimidade enquanto governante começa a cair, sendo atacado pela oposição e imprensa, o que desperta nele uma obsessão: quer um morto para inaugurar o cemitério a qualquer custo, mesmo que para isso tenha que trazer um cangaceiro ou um doente da capital para a cidade.
A partir dessa premissa, os nove atos enfatizarão essa obsessão do coronel-prefeito e seus desdobramentos. Esse fator é importante à medida que mostra os outros personagens, mesmo os que inicialmente o apoiam, tentando dissuadi-lo, conforme veem que ele passa dos limites morais e éticos. Afinal, incentivar um assassinato, utilizar verba pública para receber uma pessoa no fim da vida apenas para inaugurar um cemitério, atacar a imprensa, desacatar ordens do poder judiciário sendo do poder executivo, contratar um cangaceiro, desviar verbas da saúde e da educação em prol de campanhas eleitorais, assim como a manipulação da boa-fé do povo, são importantes para a construção desse personagem tanto quanto um político demagogo, quanto também um herói trágico.
Ainda que o texto original seja de 1962, soa quase contemporâneo dados os tenebrosos últimos anos. Nessa nova configuração de presente em que a peça ressurge, em meados de 2022, impõe-se a necessidade de discussão e revisão de modelos e valores tradicionais herdados de um passado não tão remoto, reminiscências do coronelismo e da ditadura militar, encerrados em personagens típicos – o político demagogo, a professora, o marido corno, a amante etc. – que ainda dizem muito sobre nosso país. Em suma, a peça questiona como deve ser, no momento atual, a relação humana com sua comunidade, a condução política na sociedade e como deve ser o cidadão que contribui para a boa ordem da cidade e sua prosperidade.
A cenografia da peça foi assinada por Chris Aizner, que optou por criar um coreto, elemento típico de cidades do interior, funcional, que serve como entrada do escritório de Odorico (onde uma mesa e cadeira ficam ao lado de fora), como capela da igreja, sala de velório, entre outras funcionalidades. O desenho de luz foi realizado por Cesar Pivetti, que embora tenha desempenhado um trabalho excelente em Aquário com Peixes, aqui optou por algo sem muito brilho.
A partir desse lugar dramático múltiplo, o público acompanha as desventuras de Odorico, assim como as coreografias. A escolha do coreto pareceu uma boa ideia, tendo em vista que os cenários que Dias Gomes imaginava estão representados e não seriam tão funcionais no ritmo que a atual montagem se propõe. Os lugares extracena, como a redação do jornal de Neco Pedreira (Magno Argolo), são indicados dramaticamente, e a entrada do cemitério que aparece ao final da peça é um painel simples que lembra um portão, com traços cordelistas.
Os figurinos de Fábio Namatame e o visagismo de Alisson Rodrigues são complementares e desenham os personagens com claras alusões ao cordel e ao caricato, o que funciona bem para a peça.
Os personagens bastam por si sós na narrativa e o único que foi alheio à história foi Hilário Cajazeira, que embora conste no texto original, não foi interpretado e teve suas falas dissolvidas em outros personagens, sendo mencionado apenas por carta, uma ligeira adaptação do roteiro.
A hierarquia dramática coloca Odorico como protagonista, detentor do poder dos mandos e desmandos da cidade, que possui uma relação de trabalho com alguns personagens, aliança com outros, íntimas com Dulcinea (sua amante) e de oposição com Neco Pedreira (o jornalista). Os demais personagens compartilham relações familiares (irmãs, primos, marido) simétricas e de cidadãos sucupiranos, uma vez que são personagens caricatos que representam o povo. A economia dramática favorece o ponto de vista de Odorico sobre tudo o que acontece, e se o espectador não for atento, pode acabar se apegando à figura do pequeno déspota.
Os diálogos são bem interessantes e engraçados, e os efeitos sonoros simples e cartunescos, mas bem orquestrados pelo design de som de Fernando Wada, contribuem muito para a comicidade de diversas cenas. Aos diálogos, acrescentam-se as letras e músicas de Zeca Baleiro, que são melódicas e agradáveis, com arranjos musicais típicos de música popular nordestina, ambientando e ressaltando a estética da peça. Entretanto, um erro grave na escolha da música ou composição, diz respeito à incorporação de um número musical que tem como foco o mundo dos orixás, se tratando de um caso de apropriação cultural, algo que, sem sombra de dúvida, não deveria ocorrer.
Ao observarmos o elenco, é possível afirmar que as atuações foram satisfatórias e atenderam ao esperado, dado o tom de comédia leve de fim de noite que a peça possui. As atuações demonstraram habilidade em transmitir o humor presente no roteiro, entregando as piadas e os momentos cômicos sem exageros ou tentativas forçadas de arrancar risadas, o que favoreceu a espontaneidade das cenas. No geral, o elenco cumpriu com qualidade seu propósito de proporcionar momentos leves e descontraídos aos espectadores.
Uma escolha inadequada foi a escalação de Ando Camargo no papel de Zelão, não pela qualidade de atuação, mas por ser um dos poucos personagens que Dias Gomes caracteriza, indicando que “Zelão é um negro reluzente” (Segundo parágrafo do primeiro quadro), o que contrasta com o ator. Esse não é um pormenor, mas um deslize significativo que explicita a irresponsabilidade de escolha de elenco em prol do texto, do mesmo modo que é uma clara violência do racismo estrutural, que já exclui uma parcela significativa da população do acesso à cultura.
Diante de tudo isso, a produção de “O Bem Amado Musicado”, ao adaptar a peça de Dias Gomes para o teatro musical, revelou-se uma notável tradução artística. A abordagem de temas políticos e sociais contemporâneos ressaltaram a relevância da obra em nosso contexto atual.
A apropriação cultural e o whitewashing ainda deveriam ser aceitas no século XXI?
A escalação indevida de um ator branco para o papel de um personagem negro reflete uma falha significativa na escolha do elenco, da mesma forma que a inclusão de uma das músicas que fecha a peça, bem como sua performance, voltadas ao culto aos orixás em um contexto católico de morte, indica um sério desrespeito aos rituais funerários de religiões como o candomblé e a umbanda, algo que deve ser atentamente considerado em produções artísticas.
A peça de Dias Gomes se passa na fictícia cidade de Sucupira, no interior da Bahia, estado cuja maior parte da população sempre foi, historicamente, negra. Um olhar para o elenco da montagem revela apenas um ator negro, Roquildes Junior. Esse dado não destoa muito do que ocorre com outras superproduções, mas sabe-se que o acesso ao teatro, e às artes em geral, passam por crivos de raça, classe e gênero, o que faz com que a arte nacional tenha o predomínio de pessoas brancas.
Ainda assim, em um texto onde está explícito que o ator é “um negro reluzente” e uma produção grande opta por escolher um ator branco, é inegável que a escolha se baseia na má-fé, fruto da antiga prática de black face que chega aos dias atuais na ideia de whitewashing, isto é, uma violência à presença e representatividade ao fazer a substituição de pessoas de outras etnias (no caso da peça em questão, uma pessoa negra) por uma pessoa branca em uma produção cultural.
Sabe-se que o teatro é a experiência da alteridade, de se viver o outro, e que muitas peças não são vividas – e não necessariamente precisam – por pessoas com base em suas etnias, nacionalidades e demais recortes sociais. Afinal, o teatro atravessa séculos, e suas peças ao redor do mundo não precisam recorrer a gregos para viverem personagens de tragédias e comédias antigas, nem ingleses para encenar as peças de Shakespeare. Entretanto, em países que passam pelo processo de colonização, em especial o Brasil onde a lógica da escravidão nunca se desfaz, é fundamental para as populações excluídas do poder se verem representadas e presentes no palco.
Um bom exemplo disso é a escalação do ator Sérgio Menezes no musical Mamma Mia!, de Charles Möeller e Claudio Botelho, que vive Sam Carmichael, um personagem interpretado por Pierce Brosnan no famoso filme. Ter um ator negro no lugar de um branco, produz diversos discursos nesse caso, pois garante visibilidade, representatividade e é uma clara marca de inclusão, o que faz com que a produção de Mamma Mia! tenha dado um pontapé importante.
Cabe lembrar o ensinamento de Rodney William:
O baixo índice de representatividade contrasta com a crescente apropriação, muitas vezes perpetrada por indústrias que utilizam as técnicas ou a estética desses grupos, mas não repassam nenhum tipo de incentivo nem oferecem oportunidades de trabalho. Além disso, dificilmente se engajam na luta contra as desigualdades sociais ou antirracista, nem criam ações para inclusão de minorias.
(WILLIAM, 2019, p. 40)
Afinal, um rápido olhar para a equipe de produção revela apenas duas pessoas negras: Roquildes Junior e Elísio Lopes Jr., o que salienta o caráter excludente que o teatro em si tem. Esse tipo de comportamento não deve ser avaliado como uma questão menor, uma vez que fere a dignidade de um grupo social.
Antes de aproveitarmos o trecho do texto de William para comentarmos o caso de apropriação cultural que a montagem de “O Bem Amado” realizou, cabe sempre ressaltar que o espaço de quem frequenta o teatro é predominantemente branco, o que talvez não tenha aberto margem a uma crítica de algumas escolhas inadequadas por parte da produção.
Outro grave erro presente na peça foi a inclusão de uma música que fala sobre orixás, com uma coreografia voltada para isso. Para contextualizar, a personagem Dulcineia é assassinada pelo marido e durante o velório, um número expressivo de pessoas do elenco canta e performa uma música que cita nominalmente orixás, a som de tambores. Essa escolha, além de ridícula e despeitosa, indica duas coisas: um adorno desnecessário para a peça, uma vez que não está presente no texto original e que poderia ser facilmente removida; e um desrespeito às religiões de matriz africana que cultuam os orixás, sobretudo com o povo do terreiro, majoritariamente composto por pessoas negras.
Nas palavras de Edimilson Pereira e Núbia Gomes:
[…] os rituais significam a representação, ao vivo, da lógica de compreensão de mundo que orienta os devotos e os mobiliza para organizar a sociedade.
(GOMES, PEREIRA, 2001, p. 123)
No contexto fúnebre da peça, de uma pequena cidade fictícia do interior baiano, que tem como personagem um vigário, representante da igreja católica, e que absolutamente nenhuma fala do texto referencia sequer o candomblé ou a umbanda, a inclusão dessa música significa apenas um adorno estético, mal executado, que esvaziou o significado de um ritual. Fosse outro contexto, seria palatável, mas pra essa montagem de “O Bem Amado”, não, já que os elementos religiosos de uma crença não devem ser alterados ou servir de enfeite para uma cultura – nesse caso rito religioso cristão – que não a sua. Se o ritual significa um caminho para organizar a sociedade, sua inclusão na peça deveria estruturar ou o restante do que acontece, ou ser trabalhado nos momentos anteriores.
Vale lembrar, por exemplo, que o teatro e a religião possuem uma longa história, quer seja nos autos católicos da Idade Média, no mundo grego antigo ou no período de colonização do Brasil, representado nas peças de José de Anchieta que buscavam uma conversão forçada dos povos indígenas ao catolicismo.
Uma vez que os significados são esvaziados e há o apagamento dos traços de sua religiosidade original, ocorre a apropriação cultural pela assimilação desrespeitosa desses elementos. Retomando Pereira e Gomes:
Por trás desses movimentos prevalece uma hierarquia que indica os objetos sagrados que podem ser removidos ou não dos lugares de culto. E, quando podem, é necessário verificar qual a natureza dessa mudança, pois se há objetos que só devem ser transferidos de um local sagrado para outro, há também aqueles que gozam de permissão para transitar pelos espaços do profano.
(PEREIRA, GOMES, 2001, p.125)
É possível pensarmos o sagrado e o profano de maneira respeitosa em uma peça teatral, como ocorre, por exemplo na montagem de “Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto”, do Grupo Clariô, ao articular significados da religião católica com a da umbanda, além da inclusão da folia de reis. Isso ocorre também em “Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos”, da Companhia de Teatro Heliópolis, onde a questão dos orixás estrutura toda a peça, assim como em outras montagens.
Mas para uma peça que se passa em um teatro pouco acessível, local e financeiramente, de um grupo de pessoas brancas com influência e fama no país – Cassio Scapin, por exemplo, marcou a infância de muitas pessoas –, em um contexto socialmente excludente, não há como negar que houve um desvio de significado do objeto religioso de culto.
Voltando a William:
Sendo assim, todo indivíduo deve assumir sua responsabilidade e não reproduzir práticas de apropriação cultural, mesmo as mais costumeiras e aparentemente inocentes, sobretudo para não reforçar estereótipos e estigmas, nem revigorar lugares sociais aviltantes. Ao se descontextualizar determinados elementos culturais, ressaltando aspectos interessantes para comercialização ou entretenimento, por exemplo, esquece-se de toda perseguição e de toda luta empreendida para preservar esse patrimônio
(WILLIAM, 2019, p. 54)
Um último exemplo que demarca claramente como a fronteira entre o sagrado e o cotidiano é objeto polêmico, é o caso da artista Renata Carvalho, que foi violentamente atacada pela opinião pública ao encarnar Jesus no teatro, tendo em vista ser uma atriz trans. Se grupos dominantes acreditam que seus referenciais religiosos devem ser respeitados – algo que a atriz indubitavelmente fez e mesmo assim foi perseguida – o mesmo deve ocorrer com religiões marginalizadas, que não merecem ter seus símbolos sagrados esvaziados de significado, apropriados como efeito estético e sem retorno – ou acesso – a sua comunidade.
Diante desse acontecimento de whitewashing e de apropriação cultural, uma saída possível seria a remoção da música, tendo em vista a violência já exposta, uma vez que não possui nenhum significado para a peça, mero adorno, e a escalação de outro ator para o papel de Zelão, algo que embora seja inviável, já que é o último final de semana da peça, pode ser repensado. Uma sessão aberta e gratuita ou com ingressos mais acessíveis para pessoas negras também pode ser um caminho possível de reparação.
Por fim, o objetivo dessa crítica não é de modo algum propor algum tipo de “cancelamento” da montagem, tendo em vista que a arte não deve ser censurada, exceto quando remonta ao paradoxo da intolerância, e que, nos últimos anos, a cultura no país sobreviveu a duros passos. A retomada agora apenas ressalta que a arte é essencial e deveria ser um direito público, mas aproveitando que estamos em um contexto de recomeço, é crucial que as expressões de grupos historicamente discriminados sejam respeitadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PEREIRA, Edimilson de Almeida; GOMES, Núbia Pereira de Magalhães. No balanço do divino: notas sobre uma estética do sagrado. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, v. 1, n. 29, p. 123-143, jan. 2001.
WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Polén, 2019. 208 p.
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