A peça “O Auto da Compadecida”, icônica obra de Ariano Suassuna, ganha vida através dos atores do Núcleo de Artes Paulista, sob a direção de Ruber Gonçalves. A comédia navega habilmente no imaginário que se tem sobre o mundo nordestino e promete não apenas entretenimento, mas também reflexões profundas sobre desigualdade social, cultura coronelista, moralidade cristã e seus impactos na vida dos habitantes desse universo. Como todo clássico, a temática da peça ressoa de maneira surpreendentemente atual.
A peça começa com os personagens João Grilo e Chicó, que encarnam o arquétipo do malandro, pedindo ao Padre que benza o cachorro da Mulher do Padeiro, seus patrões. Após algumas peripécias e a morte do animal, a dupla consegue persuadir o Padre a realizar o enterro através de um testamento do cachorro que beneficiaria financeiramente o padre. O Bispo entra na transação e, após essa cena inicial, mais personagens são apresentados, criados a partir de estereótipos sociais e críticas à hipocrisia religiosa. Todos os personagens citados encontram-se na Igreja discutindo o enterro, quando são interrompidos pelo bando do cangaceiro Severino de Aracajú, que os mata um por um. Com medo da morte, João Grilo e Chicó tentam enganar o atirador oferecendo a ele uma gaita que supostamente ressuscita os mortos, o que acaba não sendo bem-sucedido e resulta na morte de todos, exceto de Chicó. Esse acontecimento marca o fim do primeiro ato da peça e introduz o segundo, que é o julgamento deles por um novo conjunto de personagens: a Compadecida (Nossa Senhora), Emanuel (Jesus) e o Encourado (Diabo). Após uma parte ir para o Céu e outra para o Purgatório, a Compadecida convence Emanuel a deixar João Grilo voltar à vida, para ter outra chance.
A peça apresenta esses eventos cronologicamente, sem recorrer a flashbacks, e as poucas modificações no roteiro original, executadas por Ruber, que também assinou a adaptação do roteiro, mantiveram a importância de cada cena para o que estava sendo apresentado.
Quanto à cenografia, o cenário consistia de caixotes com xilogravuras e falas da peça, que decoravam o palco, além de cartazes com imagens de santos. Embora simples, foi funcional para o modo que a história foi contada. No entanto, a abordagem empregada na iluminação exibiu traços de inexperiência, refletindo um enfoque mais casual em detrimento de uma abordagem mais refinada e profissional. Seria enriquecedor para a produção considerar oportunidades de aprimoramento neste aspecto crucial, a fim de proporcionar uma experiência visual mais atraente e coerente para o público. Como exemplo, podemos citar que o uso constante de luz enfocada para dar destaque em alguns personagens em dados momentos não tinha uma razão aparente.
O uso da relação cena / extracena foi muito bem aproveitado. Tendo em vista o palco ser pequeno, o que dificultaria o aproveitamento de certas cenas, o uso das coxias e do limite externo do palco foi uma saída eficaz, que favoreceu os efeitos sonoros de tiros, por exemplo.
Comparado ao roteiro original, a direção suprimiu os personagens Palhaço, Sacristão, Frade, Cangaceiro e Demônio, redistribuindo suas falas para os demais personagens sem perder a essência.
A relação de amizade entre João Grilo e Chicó, protagonistas e personagens que são vistos a partir de certas expectativas pelo público, constitui o núcleo central da montagem e é o eixo responsável por ser o coração da história. A escolha inadequada dos atores que interpreta essa dupla pode ser muito prejudicial para a peça, o que não aconteceu, porque as interações e a camaradagem entre Otavio Lino e Matheus Serra funcionaram bem.
A performance do elenco, embora visivelmente entregue com dedicação, poderia ser explorada de forma mais profunda. Uma busca por camadas adicionais de expressão e emoção poderia elevar ainda mais o poder cativante da peça. O uso do palco pelos atores, por exemplo, ficou sem uma proposta clara, pois em dados momentos alguns atores interagiam entre si, se olhando, conversando, o que permitia que o público entendesse que a história se passa no palco. Em outros, alguns personagens, mesmo conversando entre si, falavam olhando para o público, como se uma parte da ação dramática acontecesse fora do palco, o que não foi construído. Dessa forma, a relação com a plateia ficou ligeiramente confusa, o que seria interessante evitar ou olhar com mais atenção.
A hierarquia dramática da peça privilegia João Grilo, mas as relações entre os personagens são formadas por núcleos diversos. O núcleo do trabalho relaciona Chicó, Grilo, Padeiro, Mulher do Padeiro e Antônio Morais, em que os dois primeiros são funcionários submetidos aos três últimos. O núcleo religioso relaciona o Padre e o Bispo, onde o primeiro é hierarquicamente inferior ao segundo, e ambos dependem do dinheiro da sua paróquia. À parte, Severino de Aracaju representa o mundo dos cangaceiros, antagônico aos outros personagens dos núcleos apresentados. Por fim, o núcleo espiritual é composto pela tríade Emanuel, Compadecida e Encourado, onde o último é antagônico dos dois primeiros. Esses núcleos se relacionam diretamente apenas na segunda parte da peça, com exceção de Chicó, que ficou no mundo extracênico dos vivos.
Acerca do nível discursivo, a peça possui um humor leve e gostoso, como esperado de toda comédia de fim de noite. Quando não é a linguagem, são as circunstâncias que os personagens vivem que são engraçadas. Embora a peça possua um caráter oral nordestino, alguns atores não exploraram muito esse recurso, ora utilizando ele, ora falando com o sotaque paulista, um ponto que seria interessante rever para dar mais verossimilhança à situação. Entretanto, o grupo explorou bem, através de recursos sonoros, textuais e visuais, a importância que o dinheiro tem para os altos e baixos da trama.
Por fim, a montagem do Núcleo de Artes Paulista apresentou uma notável adaptação do clássico de Ariano Suassuna, embora haja margem para aprofundamento das performances e aspectos técnicos para uma experiência ainda mais rica.
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