Rússia. 1842. Inverno. Manhã. Dmitri chega tremendo à repartição. Seu capote havia sido roubado ao atravessar uma famosa ponte. Assustados, os colegas de repartição creditam o roubo da vestimenta ao lendário Capota, uma figura fantasmagórica que, supostamente, vinga-se de seus algozes continuamente ao roubar os capotes de burgueses, burocratas e servidores públicos em geral.
É com esta premissa que, para suportarem a tediosa jornada de seu trabalho público, os colegas decidem contar a lenda do Capota, Dmitri incluso. Do nascimento à morte, a história do funcionário de “um departamento” é encenada na sala compartilhada.
Com marcações precisas na ambientação dinâmica, desenvolvida com apoio da detalhista e bela iluminação, a talentosa companhia Os Betessetes, com direção de Eduardo Vaccari, nos traz uma história que pode ter sido escrita há mais de 170 anos, mas é cada vez mais assustadoramente atual.
O Capota, se chamava, em verdade, Akkaki akakievitch, e teve, ao longo da vida, apenas 2 coisas que lhe eram caras: seu trabalho de copista e seu capote. De nada interessava à ele nada além destas duas coisas. Para ir ao trabalho e fugir de sua existência sem sentido e nem graça, Akakievitch necessitava de seu capote, que por mais remendado que fosse, era o que o mantinha vivo em seu encontro com o frio proveniente das pessoas que o cercavam. Estas, por suas vezes, conseguiam ser mais frias do que o inverno de São Petersburgo, onde se passa a história.
Akakievitch tenta se segurar o máximo que pode em sua ilusão de conforto e felicidade. Ele luta pela manutenção de sua segurança regrada, tão arduamente conquistada em meio à tantas intempéries, através dos remendos em seu capote. Ele está inevitavelmente acomodado à derrota até o dia em que é finalmente preciso substituir seu amado bastião de segurança. Determinado pela urgência e obrigatoriedade, Akakki enfrenta tudo o que se mostra no caminho com extrema diligência e desapego, à fim de reaver sua segurança, porém, em versão muito mais efetiva – e quentinha.
O sucesso de sua missão traz mais louros do que ele conseguia imaginar: de repente, como recompensa merecida, o mundo repara nele. O mundo não faz dele um derrotado, o mundo reconhece sua vitória e ainda se regojiza ao seu lado. O mundo e a vida amam Akakki.
Mas Akakki é maior que a vida. A vida não admite e num surto de ciúmes e inveja, retira de vez sua segurança. O mundo, por sua vez, tomando partido da vida, esmaga-o com a realidade fria da ignorância humana em cada um dos passos da nova tentativa de Akakki, que agora descobriu-se maior do que a vida e não admitirá ser ignorado e machucado novamente. A insistência dele irrita o mundo, que tem a vida gritando como a esposa muito barulhenta de Petrovitch, o alfaiate, em seu ouvido. Akakki encontra uma forma de ser maior do que o mundo e a vida, maior até do que o frio que vem da Sibéria e dos corações dos personagens.
A frieza humana, aliás, é uma personagem à parte em todo o espetáculo: tem suas responsabilidades em todas as atitudes tomadas pelas diversas personagens. Cada pequena atitude desprovida de empatia por parte de outros resulta em uma nova peça encaixada no plano rumo ao inexorável fim de Akkaki. Numa obra onde não há um ponto sem nó, Gógol criticava e fazia pensar através de sua comédia. Nela, o povo, os costumes, o sistema e toda a sociedade Russa, pintada por ele com palavras em tons frios, porém hilários, de prazeres e status, agressividade e indiferença, sobrevivência e vantagem, é representada numa casca de noz.
Burocracia é uma das formas mais cruéis da expressão humana da frieza em sociedade. Ou ao menos é assim que nos sentimos ao término de um espetáculo que tem a capacidade de nos fazer chorar de rir, rir chorando e chorar sorrindo. Como isso tudo acontece em tão pouco tempo e de forma tão incrível, só assistindo para saber!
Por Raísa Cabral
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