Uma tomada aérea do Planalto sintetiza um Brasil bipartido. Do lado esquerdo, predomina a cor vermelha. Do direito, toma conta o verde e amarelo. Na abertura de “O Processo”, novo longa-metragem de Maria Augusta Ramos (“Justiça”, “Morro dos Prazeres”), seguem-se imagens da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara. Os parlamentares presentes aproveitam-se da dimensão televisiva do evento e criam um tumultuado clima futebolístico. Para além da política, portanto, está em jogo a irreconciliável rivalidade entre duas claques.
“Obrigado pela torcida”, agradece Janaína Paschoal mais adiante. Ao longo do filme, a advogada de acusação recebe apoiadores e posa para fotos. Reforça, desse modo, o clima de Fla-Flu instaurado. No pólo oposto, José Eduardo Cardozo, representante da defesa, reúne-se com a cúpula do Partido dos Trabalhadores em busca de estratégias. Sintomática da desesperança geral, uma fala do deputado Lindbergh Farias (PT/RJ) compara Dilma a Josef K., protagonista de romance homônimo ao documentário.
Assim como no livro de Franz Kafka, situações absurdas impõem-se em meio ao julgamento. A interrupção do discurso de Lindbergh para trocar uma campainha, por exemplo, parece até roteirizada. Em outros momentos, contudo, o humor realmente resulta de uma construção cinematográfica. Para esse fim, a montagem de Karen Akerman (“O Lobo Atrás da Porta”, “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei”) contrasta à verborragia burocrática planos de reação. Se, por um lado, essa estratégia certamente empresta alívios cômicos a uma obra densa, por outro, acaba por minar a percepção do espectador. Em outras palavras, para que o público note a inconsistência do pensamento de Paschoal, não se faz necessário opô-lo ao desdenho da senadora Gleisi Hoffmann (PT/PR). Ou, ainda, não desqualifica as ideias da advogada mostrá-la satiricamente tomando Toddynho.
No entanto, diminuir Maria Ramos por posicionar-se, como fizeram alguns críticos, atesta um total desconhecimento do gênero documentário. O cinema consiste, afinal, em uma criação artística, uma visão de mundo mediada pelas lentes de sua realizadora. Como ela assumiu ao GLOBO, “a versão pelo afastamento da ex-presidente ganhou uma cobertura tão desequilibrada na mídia, na época, que talvez valha a pena dar mais atenção ao outro lado agora”. Na mesma entrevista, Ramos relatou também as dificuldades de acesso aos gabinetes de líderes do PSDB e do PMDB. O maior tempo de tela de políticos petistas decorre, logo, não estritamente de uma predileção partidária, mas principalmente de uma barreira enfrentada pela equipe. De toda forma, porém, há um claro cuidado em não comprar cegamente uma versão. Momentos de crítica e autocrítica garantem voz ao contraditório e refutam a hipótese de uma narrativa unilateral.Após estrear no Festival de Berlim em fevereiro, “O Processo” atualizou-se antes de chegar ao Brasil. A especulação “Se esses caras resolvem prender o Lula…” transformou-se em realidade, como explicita a cartela de encerramento. O uso abundante de textos, por sinal, ajuda a contextualizar o cenário retratado. Falta, entretanto, uma melhor apresentação das personagens para uma plateia estrangeira. Deputados e senadores aparecem sem seus respectivos créditos, dificultando o entendimento dos não-familiarizados com a política nacional.
O novo longa-metragem de Maria Augusta Ramos oferece, por fim, uma longa e dolorosa inserção no processo de impeachment de Dilma Rousseff. O olhar pessimista para o futuro, traduzido com inteligência pelo nebuloso último plano, dita o tom das mais de duas horas de entrega física e emocional.
* O filme faz parte do festival “É Tudo Verdade”, com exibições no Rio de Janeiro hoje, terça-feira, 17 de abril, e amanhã, 18. A estreia comercial está prevista para o dia 17 de maio, quinta-feira.
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