O papel das mulheres nos nossos dias vem sendo alvo de discussões acaloradas. Discussões que tratam de questões de gênero, etnia, classe social… As temáticas e os desafios que permeiam ser mulher são inúmeros e por vezes densos. Ser mulher na sociedade atual é aceitar com normalidade abusos, privações e o medo. E até onde é possível ir para se libertar dessas amarras? Qual a fuga possível em uma comunidade que entende o gênero feminino como uma parte inferior no jogo social? Sobre a fuga dessa situação, o espetáculo “ Ocupação Nós” conta a história de quatro mulheres tão diferentes unidas por traumas comuns. Em seu último final de semana da temporada no Teatro Augusta, o espetáculo narra temas indigestos de forma inteligente.
Pintando um quadro com personagens que, de alguma forma, englobam perfis muito distintos, o número apresenta mulheres que vivem isoladas em um local úmido e escuro, sem contato com a luz do sol ou com a sociedade. O local é sujo e desordenado, e a vivência é tangenciada pela total carência de recursos. Sem noção do tempo passado nessa condição, sem acompanhar o passar das horas… imersas em uma condição animalesca perdem suas lembranças. Aos poucos, no entanto, começam a questionar o motivo daquela condição, daquele total isolamento. Com o gradual retorno de fragmentos do passado as moças começam a concluir que a vida poderia ser melhor longe de tudo aquilo… E que eram felizes fora daquele lugar. Com o avançar do espetáculo, contudo, percebem que as coisas não eram bem assim.
A narrativa traz, em algum grau, uma relação reversa à alegoria da caverna de Platão, onde indivíduos presos em uma caverna só experimentam o mundo através das sombras que o universo exterior produzem dentro da caverna. E quando um desses indivíduos consegue sair e vivenciar o mundo, ele retorna para dividir suas experiências, mas, para sua surpresa, é ridicularizado pelos seus iguais (que só aceitam como real aquilo que conhecem). No caso das personagens deste espetáculo o isolamento é proposital para fugir de uma realidade que é muito mais aprisionadora do que aquele espaço úmido, escuro e sujo onde habitam.
Nesse ponto, outra relação forte que se deve tratar é sobre o protagonismo nas pautas. Mulheres precisam ser escutadas, uma vez que elas têm a noção real do que cerca o fato de ser mulher. Não há como haver discussão sem que sejam consideradas as demandas genuínas delas, pois se assim não for, será como os homens dentro da caverna a discutir o que é melhor para um mundo sobre o qual não se conhecem as necessidades e anseios.
A sala de teatro onde o espetáculo foi apresentado permitiu uma forte interação entre a energia das atrizes e a plateia, aproximando do público todo aquele universo obtuso (dentro e fora do isolamento). O trabalho das atrizes, neste ponto, é um aspecto fundamental para o bom desenvolvimento do número: Consistentes, as quatro moças trazem a cena com muita propriedade realidades cruéis. As lacunas deixadas pelo texto são de fácil compreensão para (não necessariamente) bons entendedores. O trabalho de preparação e direção (de Ray Farias e Rafael Salmona, respectivamente) comunicam de forma precisa e impactante os abusos (por vezes diários) da rotina feminina. Misturando momentos densos com um bom humor (quase ácido), o espetáculo equilibra o trato com as histórias contadas.
O figurino e a cenografia remetem ao caos, auxiliando no mergulho no universo confuso no qual as personagens se encontram. A iluminação com momentos alternados de escuridão total auxilia na imersão do público.
Uma falta sentida, no entanto, são pautas que não envolvam somente as relações entre homens e mulheres. Assim, aspectos como etnia, por exemplo, não são contemplados, deixando uma pequena lacuna em cena (considerando as principais pautas atuais).
Finda assim sua temporada na maior capital do país um espetáculo com uma pegada profunda que merece ser visto!
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