A relação entre a população mais pobre e a polícia é problemática em quase todos os lugares do mundo, principalmente em países subdesenvolvidos. No Brasil, quem mora nas favelas e periferias sofre com as abordagens violentas e em muitas vezes fatais dos “homens da lei”. No entanto, “Os Miseráveis” de Ladj Ly, mostra que não são apenas os brasileiros que possuem seus direitos ignorados por aqueles que estão lá para protegê-los. Na França, os abusos são os mesmos, independentemente se o cenário é uma das cidades mais ricas e conhecidas do mundo: Paris.
Claro que a trama se desenrola nas regiões menos turísticas da capital francesa, onde se encontram a maior parcela de imigrantes africanos e muçulmanos. É durante as rondas dos detetives Chris (Alexis Manenti), Ruiz (Damien Bonnard) e Gwada (Djibril Zonga) nesses locais, que os conflitos são gerados. “Respeitados” pelos moradores, eles cuidam de quase tudo, como o furto de um filhote de leão de um circo. O animal é furtado pelo jovem Issa (Issa Perica), já conhecido por ter causado outros problemas no passado e por ser assíduo frequentador da delegacia.
É na busca por Issa, e por uma demonstração de abuso de poder vinda de um dos detetives que o caos se instaura, envolvendo moradores, gangues e até as crianças do local. Dizer mais do que isso pode estragar a experiencia do expectador, mas é preciso se preparar para a tensão e a revolta que o longa causa durante seus cem minutos de duração. Sentimentos conhecidos pela maioria dos brasileiros ao se deparar com a representação estrangeira de uma realidade similar à que vivem, e que já foram tão bem retratadas por obras nacionais como os geniais “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”.
Para aproveitar as citações, é possível traçar um paralelo entre “Os Miseráveis” e os filmes de Fernando Meirelles e José Padilha, mas com uma diferença: a proporção da violência. Sim, Ladj Ly mostra os detetives de sua história em momentos imorais, mas eles são como nobres cavalheiros em comparação ao que faz a polícia corrupta de “Cidade de Deus”, e com algumas atitudes do Capitão Nascimento. Dito isso, para os calejados espectadores tupiniquins, o impacto pretendido pelo cineasta francês pode não ser sentido. Evidentemente, excessos policiais não podem ser aceitos em nenhum nível, porém, os franceses parecem menos cruéis, e ainda há a impressão (verdadeira ou talvez seja a velha síndrome do vira-lata) de que a justiça de lá pode ser mais eficiente em reparar os problemas.
Alegorias sociais a parte, “Os Miseráveis”, possui elementos cinematográficos dignos de nota, como o tom realista empregado pela fotografia de Julien Poupard. Apelando à estética do documentário, sua câmera entra na vida daquelas pessoas e acompanha impassível seus sofrimentos em uma periferia onde impera o cinza vindo dos prédios desgastados dos condomínios populares. Ly é outro a se destacar com uma direção de atores segura, principalmente quando comanda Perica. O jovem ator amador é competente em desenvolver o seu personagem, que vai da inocência infantil à fúria adulta. Talento do intérprete, mas com ajuda da boa direção.
Em síntese, se Victor Hugo estivesse vivo e assistisse “Os Miseráveis” ele constataria com tristeza que seu emblemático romance do século XIX continua atual em pleno século XXI. Isso já estaria claro para ele quando os guetos de uma Paris desconhecida dos cartões postais é contemplada pelas lentes de um filme que visa os excluídos perseguidos pela condição econômica e pela lei. Eles são os mesmos que, na abertura da história, comemoram o título da copa do mundo junto com uma multidão de burgueses aos pés do Arco do Triunfo. Do sentimento de glória e pertencimento ao esquecimento. Tudo leva a crer que a liberdade, a igualdade e a fraternidade se aplicam apenas àqueles que conseguem ver a Torre Eiffel da janela de seus apartamentos.
Imagens e Vídeo: Divulgação/Diamond Films
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