Uma pausa para a reflexão
Em cartaz no Espaço Rogério Cardoso, na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, desde o dia 07 de fevereiro, “Para Onde Ir” é um monólogo dramático que chama atenção de amantes de literatura e artistas em geral, tendo sua premissa construída em cima do personagem Marmieládov, de “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski, e da obra “Une Saison en Enfer”, de Arthur Rimbaud, que, unidas e adaptadas, são apresentadas em homenagem a dramaturgia crítica de Bertolt Brecht.
Com três extraordinárias referências, o espetáculo apresenta a história de Marmieládov, um ex-funcionário público que após perder o emprego se entrega ao álcool e ao desespero humano e existencialista. Em uma taverna, o personagem, que começa bebendo sozinho, percebe a movimentação de fregueses e aproxima-se ora de um, ora de outro, para lhes contar as dificuldades que passa por conta do vício, a necessidade de sustentar sua família e as muitas desventuras de sua sofrida vida.
Ao chegarmos na entrada da sala, somos recepcionados pela equipe de produção, muito educada e receptiva, que nos oferece café e doses de cachaça para que possamos “entrar no clima” do espetáculo. Antes de entrarmos recebemos a informação de que podemos consumir as cortesias dentro da sala, desde que, ao término, deixemos os copos sobre as mesas. Também fomos comunicados que não devemos sentar em cadeiras específicas espalhadas pelo cenário, com exceção de algumas pessoas do público que são escolhidas pela própria diretora.
Essa descrição do parágrafo anterior serve de base para compreender o desenvolvimento que começa a ser relatado a partir de agora. Por estarmos em um ambiente pequeno, com pouca altura, a cenografia de Yashar Zambuzzi e Viviani Rayes é um retrato um pouco mais contemporâneo do que poderia ser uma taberna, mas ainda assim tem seus específicos encantos. Não entrando em detalhes para não perder o dinamismo do vivenciar, temos a predominância de madeira e utensílios em tons terrais, além de um revestimento, em tecido, com estamparia de pequenas pedras. Alguns objetos foram posicionados de forma dinâmica para a imersão cênica, assim como alguns são itens de valor interpretativo.
Tal configuração espacial/visual vem de encontro a proposta de iluminação, criada por Elisa Tandeta, que basicamente nos entrega luzes brancas, vermelhas, e, em sua grande maioria, amarelas. Elas seguem, em determinados momentos, uma linguagem de recortes, para a intensificação da dramaturgia, além de favorecer a ambientação “humilde” e retrógrada. Não podendo afirmar se foi um delay humano ou maquinário, mas as poucas mudanças de iluminação seguem um ritmo não muito favorável ao que se desenvolve em cena. Tal acontecimento também ocorre com a sonoplastia e audição da trilha original de Chico Rota. Ainda que possam passar despercebidos por um olhar mais cru, como um todo, eles não interferem diretamente na magnitude do que recebemos como espectador.
O segundo projeto desenvolvido pela Te-Un TEATRO, Companhia da Rayes Produções Artísticas, após o sucesso de público e crítica de “Blackbird”, do dramaturgo escocês David Harrower, “Para Onde Ir”, marca a estreia da atriz e produtora Viviani Rayes na direção, que podemos perceber que foi muito bem pontuada. Sem conhecer a dinâmica de seu trabalho como diretora é possível concluir que ela intensificou sua direção em maneirismos e posições específicas à se expor a narrativa do texto, explorando a percepção em uma montagem de arena, que requer o mínimo de interação dos que o assiste. Desenvolver esse processo personagem-publico vem com um tom ousada para sua estreia, uma vez que a reciprocidade do público é muito relativo, principalmente quando estamos falando de um drama. Da ousadia à sua composição, Rayes soube extrair o necessário do ator Yashar Zambuzzi, que também é responsável pela adaptação do texto, que ecoa o quão desgraçados e desumanos podemos ser.
Zambuzzi nos entrega um Marmieládov que foge a caricatura teatral de um bêbado. Sua construção “alterada” baseia-se no embriagamento interno, da alma, e não no externo, oriundo de suas bebedeiras. Por estar em uma das cadeiras específicas, foi possível ver em detalhes e riquezas suas nuances interpretativas que fazem de Marmieládov um reflexo humano. Entre essas pequenas configurações podemos destacar a respiração e a dicção, essenciais para qualquer ator em cena, ali presentes de maneira controlada e construída para que não fuja do tom e não cai no melodrama. Um dos auxílios nessa construção visual vem do delicado e pontual figurino de Rogério França que capta a essência da miséria sem deixa-la tão evidente trazendo detalhes intrínsecos a vestimenta do personagem.
Não precisamos entrar em mérito de quão grandioso é o texto e sua adaptação. Falar da pequenez humana como um choque de realidade que nos alcança é um mérito grandioso em qualquer plataforma artística. A abordagem de temas como prostituição infantil, abuso, violência contra mulher, miséria, entre outros, é realizado com maestria levando o espectador ao século passado, mas retratando a atualidade contemporânea que muitas vezes nos foge aos olhos, ainda que em constante presença. “Para Onde Ir” é uma representação tênue entre o visceral e o brando, entre a ficção e a realidade, entre o poder e a perda, entre estender a mão e ignorar quem precisa de ajuda.
“Mas senhores, por favor, não fiquem indignados, pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.”
Aplausos.
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