O estudo da violência sobre determinados corpos é a escolha precisa com a qual a Cia de Teatro Heliópolis caminha com as linguagens da dança e da pantomima em seu espetáculo “Quando o discurso autoriza a barbárie”. A montagem, que esteve em cartaz no SESC Belenzinho em setembro, conta com a habilidosa direção de Miguel Rocha e investiga a corporeidade como suporte de aplicação ou recepção da violência, contornando sua transformação ao longo da História brasileira.
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A peça abrange o período do início da invasão do Brasil pelos portugueses até o descaso bolsonarista que resultou na morte de mais de 700 mil pessoas na pandemia de COVID-19. Nesse cenário, os personagens são o receptáculo social e histórico do discurso da violência, que chega ao Brasil fisicamente por meio das armas de fogo e ideologicamente pelo epistemicídio dos povos indígenas, e vai se transformando e se sofisticando ao longo do período do Império, República, Ditadura Militar e deságua no saudosismo autoritário que o país enfrentou recentemente. Através dessa exposição cronológica, o grupo propõe nos 90 minutos do espetáculo uma visão sobre a dialética entre violência e resistência.
A cenografia de Eliseu Weide utiliza dois elementos centrais em sua composição: o palco e um projetor, que são articulados como uma narrativa cenográfica. O ambiente inicial do palco são duas palmeiras e um chão com um pequeno matagal, apoiadas sobre uma plataforma com rodinhas. Após a canção de abertura inicial, a plataforma é arrastada para o canto lateral do palco, e há o uso de poucos objetos, transitórios em cena, também apoiados sob plataformas móveis. Parte expressiva do espetáculo recorre a projeção, com imagens que vão desde textos até fotografias antigas que retratam os períodos históricos. Ao final da peça, o suporte com as palmeiras retorna ao lugar inicial, finalizando o ciclo cênico-narrativo de modo circular, no período histórico da pandemia. Nessa cena, os atores e atrizes distribuem placas com nomes, idades em que as pessoas morreram e algumas palavras sobre essa pessoa, uma tentativa sacralizada de honrar a essas vidas que se esvaíram, e as colocam no chão, como lápides que o público pode transitar para conferir ao final do espetáculo.
A iluminação de Guilherme Bonfanti é constituída de uma geral quando há muitos atores e atrizes no palco, focalizada quando há poucos e oscilante, com “explosões” de luz, em cenas de violência física. Parte significativa dela é dividida com a luz que vem do telão. Tanto o cenário quanto a iluminação são entrelaçadas com a qualidade da sonoplastia de Lucas Bressanin, e são elementos de extrema importância para a estética da pantomima presente no espetáculo, pois são responsáveis por ambientar os lugares dramáticos que contextualizam o espectador nos períodos históricos e geográficos que ali são representados.
A partir dessa espacialidade, emergem os personagens que concretizam a variabilidade da Violência, aqui demarcada com letra maiúscula pois é a entidade incorpórea que é usada como o ponto de vista pelo qual os personagens são oferecidos ao espectador. Nesse sentido, seu véu é diluído nos corpos do elenco composto por Álex Mendes, Anderson Sales, Dalma Régia, Davi Guimarães, Fernanda Faran, Isabelle Rocha e Walmir Bess, que incorporam diversos arquétipos (o padre, o policial militar, o escravizado etc.) que vão compondo o movimento dialético de quem aplica a violência e de quem resiste a ela enquanto a recebe. O que media esse movimento é a hierarquia dramática sócio-histórica do Brasil, que ganha forma na representação do Estado como detentor do poder e da vigilância sobre os corpos (o capitão do mato, a polícia etc.) e os sujeitos destituídos desse poder (escravizados, militantes etc.).
As representações da Violência no espetáculo são explícitas e brutais (como a da tortura na Ditadura Militar), embora encenadas, e, conforme o tempo histórico avança, é perceptível que a violência física começa a conviver com a psicológica e com o descaso, chegando no Brasil atual em que a polícia atira em corpos negros (violência física), casos amorosos com homossexuais são escondidos da família (violências psicológicas vivenciadas pelos dois lados da relação) e uma multidão de corpos são enterrados em vala comum após a pandemia de COVID-19 (descaso como violência), por exemplo.
Disso decorre que o leitmotiv do espetáculo mostra a maneira como os mecanismos de violência se aprimoram com o tempo. Desse modo, os conceitos de Deus, Pátria e Família, atrelados à História e, portanto, constantemente modificados, são definidos, defendidos e amparados pelo Estado, que constrói, por meio da Violência, o amparo de grupos dominantes sobre os corpos marginalizados; homens brancos de um lado, negros, mulheres, pessoas LGBTQIAPN+ e pobres do outro.
Como supracitado, a peça adota uma estética semelhante à da pantomima, isto é, enfatiza os gestos e a mímica para narrar com o corpo, mas adere também a dança. Assim, pela ausência de diálogos ou sequer sua simulação, a narratividade corporal é imperativa sobre a dialogicidade, que é nula, tornando o espetáculo uma vitrine do paradigma moral da violência, cujas ações dramáticas movimentam a construção da trama. O não-dito é mostrado.
Por fim, a Cia de Teatro de Heliópolis apresenta com primor sua tese sobre a perpetuação da Violência no país e como o Estado persegue sempre os mesmos corpos em um contexto marcado por desigualdades e injustiças. O uso da pantomima contribui como recurso ao expor que palavras não são necessárias para a fácil identificação da violência sistêmica cotidiana.
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