A mais nova sensação do catálogo da Netflix é, sem dúvida, a queridinha sul-coreana “Round 6”, como ficou conhecida no Brasil, ou “Squid Game”. O sucesso estrondoso e retratação dos deslocados/marginais da sociedade levou à comparações com outra produção, “La casa de papel”, porém, talvez, seja mais produtivo procurar semelhanças de gênero nas próprias produções orientais, não muito expostas no mainstream, porque tanto seus acertos quanto erros explicam um pouco o porquê desse furar da bolha.
Round 6 explora o que seriam versões mortais da infância, o que não é algo necessariamente novo. Nos Death Games, como são chamadas as produções do tipo, essa temática da subversão da inocência infantil aparece vez ou outra. Em outro momento na Woo! já foi comentado sobre a imersão distópica retratada e, embora séries adolescentes de sucesso ocidentais façam uso na mesma toada do entretenimento pela violência, como Jogos Vorazes e A seleção, é mais comparável relacionar Round 6 em sua própria bolha de produções, como “Dangan Ronpa”, “Mirai Nikki”, “Alice in Borderland” e principalmente “Battle Royale (1999)”, o grande pai do gênero.
Porém, Round 6 consegue prender com brincadeiras tradicionais da Coréia sem deixar que isso se torne algo exclusivo de sua realidade nacional, deixando as regras claras e estabelecendo um clima de tensão que não seria possível do contrário. Toda a preparação da infância foi senão um ensaio para os perigos da vida adulta.
A série também segue outro elemento formulaico de forma inteligente: o próprio jogo impõe o elemento de mudança — através do financeiro — contudo, a exposição à violência e a necessidade de transgredir a moralidade em certas ocasiões, quiçá sejam o principal motivo para colocar os sobreviventes diametralmente opostos a onde começaram — e quem não estiver disposto e/ou apto a isso terá de ser eliminado.
Em uma das leituras mais generalistas, assim como “Parasita (2019)”, Round 6 estabelece esse microcosmo da vida lá fora, onde o dinheiro perverteu todas as relações interpessoais, mas há ainda a possibilidade de subir de vida, porém, para tal, não há opção senão explorar física e psicologicamente outros indivíduos, mesmo passar, literalmente, por cima deles. Por ser essa a condição que sustenta a série, não é de se estranhar que haja tamanha conexão com os personagens e suas histórias, mesmo dos secundários nas pequenas subtramas. Para tal, valeria o comentário do diretor do já citado Parasita.
Fiz o filme especificamente para a sociedade na Coréia do Sul, e a recepção e resposta em tantos países foi a mesma, ou seja, essencialmente vivemos no mesmo país, chamado capitalismo.
Joon-ho Bong, diretor de “Parasita” em resposta à repercussão do sucesso ganhador do Oscar de melhor filme de 2020.
Uma das críticas recorrentes para o drama envolve o questionamento de um jogo não justo, afinal, há vista grossa para certas coisas e tratamento extremo para outros. Na construção do todo, por mais desagradáveis que possam ser essas ocorrências, a série é capaz de se sustentar como algo divertido e suficiente em sua proposta. Afinal, como amostragem da vida lá fora dos mais desfavorecidos, não há lei, polícia ou salvador que os ampare — e Round 6 faz questão de esfregar graficamente isso na cara do telespectador.
No início da série, fica claro que não há outra opção senão aceitar o jogo. Em um contexto em que você é o que você produz, quem não é capaz de se sustentar, de conseguir um emprego, não é senão um peso para os demais e faria um bem melhor para todos se não existisse. Abaixo, destacada uma frase do início da série, que retrata a inversão da valoração entre a vida e o ter.
E se formos embora? Será diferente por um acaso? A vida lá fora é um inferno.
Trecho destacado de Round 6. Tradução/Reprodução: Netflix.
Outro ponto, a violência, de fato, é um dos capitalizadores de polêmica mais óbvios. O exagero aqui proposital serve não só para o choque, mas como um lembrete de que, tanto dentro quanto fora do jogo, a sociedade, enquanto permitir essa desigualdade, irá perpetuar a violência obscena, levando-a a nível pornográfico. Deve-se recordar que o show teve a decência de poupar a morte mais visual de certos personagens, enquanto não poupou esforços em espetacularizar a de outros.
O que se tira é algo positivo e um entretenimento bom, que, de quebra, é capaz de tirar quem assiste de uma posição passiva e colocá-lo também como um personagem que poderia bem estar na posição dos participantes. A primeira temporada termina com vários pontos não solucionados, pendentes para uma continuação já confirmada e, não trazendo essencialmente algo de muito novo para o gênero, tampouco tendo um caráter de unidade — isto é, a trama poderia se dar por fechada por aqui — é razoável encarar o que se tem até aqui como um produto bom, mas incompleto, que há de resolver algumas incoerências ainda em aberto, para além de alguns elementos pouco críveis, mas que devem permanecer na suspensão da crença.
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