O documentário “Sem Descanso” abre com uma sequência de imagens retratando o cotidiano do bairro da Liberdade, região de baixa renda de Salvador. Em seguida, o diretor Bernard Attal apresenta alguns dos entrevistados de seu filme, que comentam sobre a vida de Geovane, um jovem de 22 anos morador do bairro. Em poucos minutos, é exposto ao espectador o contexto – familiar, amoroso, social – no qual Geovane estava inserido até ter sua vida subitamente interrompida ao ser brutalmente assassinado e mutilado por um grupo de policiais militares no ano de 2014. A partir desse ato hediondo e seus desdobramentos, o diretor procura entender, afinal, por que as polícias brasileiras matam tanto e como isso é consequência da própria construção histórica do país, mas também fator decisivo para a ascensão de figuras extremistas no cenário político nacional.
Ao ler o parágrafo anterior, tem-se a noção do tamanho do desafio que “Sem Descanso” propõe a si mesmo: utilizar um caso específico como ponto de partida para a compreensão de um problema sistêmico brasileiro que se origina há, pelo menos, alguns séculos. Logo, não é de se surpreender que, apesar de centrar seu filme na história de Geovane e na busca de seu pai por respostas acerca de sua morte, Attal eventualmente se perca em seu esforço hercúleo de querer tratar de tudo um pouco, chegando a fazer um desvio de percurso até Saint Louis, nos Estados Unidos, e, no final do filme, apresentar mães de outros jovens que também foram assassinados por policiais. Tem-se a impressão de que “Sem Descanso” quer entregar ao espectador a maior quantidade de informações e personagens possível em pouco menos de 80 minutos de duração, mesmo que isso comprometa a unidade da obra.
Todavia, é curioso perceber que essa mesma estratégia “fominha” também é responsável por, de tempos em tempos, garantir a renovação de interesse no filme. Apesar das revelações acerca do progressivo caráter bárbaro das ações dos algozes de Geovane manterem o espectador sempre alerta quanto aos desdobramentos do caso, certas situações repetitivas acabam tornando o longa ocasionalmente enfadonho, esvaziando sua potência e chamando atenção para aspectos negativos da obra. Um bom exemplo disso são as inúmeras visitas de Jurandy, pai de Geovane, ao Instituto Médico Legal. Esses momentos apresentam propostas e observações interessantes, como o ato de levar Jurandy novamente a um local que mudou completamente sua vida – numa tentativa não de reescrever o passado, mas mantê-lo vivo – e a cruel simbologia por trás do cadáver de Geovane, um jovem negro morto injustamente, ter sido levado a um IML nomeado em homenagem a Nina Rodrigues, um dos mais célebres criminologistas brasileiros, mas também notório eugenista, difusor da ideia de que a criminalidade era inerente aos negros. Entretanto, à medida que essa situação se repete, tais elementos perdem força e o caráter artificial (e até mesmo, brega) dessas “reconstituições” das idas ao IML tomam a dianteira.
Por isso é revigorante que, quando parece ter esgotado o seu discurso, “Sem Descanso” resolve tratar do assassinato de negros pobres pela polícia de maneira mais ampla, entrevistando juristas, ativistas dos direitos humanos e acadêmicos, a fim de entender as origens do problema e por que é tão complicado resolvê-lo. Nesse trecho, o filme é bastante bem-sucedido, pois, ao mesmo tempo em que deixa bem explícito o seu posicionamento diante da questão, não visa tratar o assunto de forma simplista ou pedante. Pelo contrário, se não é possível abordar o tema da forma mais aprofundada, o filme se propõe a, ao menos, apresentar e discutir as tensões raciais que permeiam a truculência policial de forma didática e objetiva, sem florear os termos, mas também sem se dirigir apenas para “convertidos”.
“Sem Descanso” é um documentário bastante convencional e longe de ser perfeito: tenta tratar de muitas coisas em pouco tempo, falta uma maior coesão estética e, em um filme no qual a questão racial é tão cara, é imperdoável a iluminação equivocada que embranquece a pele negra de uma série de entrevistados. Mesmo assim, é um projeto interessante, acessível e necessário.
Imagens e vídeo: Divulgação/Livres Filmes
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“É imperdoável a iluminação equivocada que embranquece a pele negra de uma série de entrevistados”????!!! Aonde você viu isso?
Como negra nascida na periferia de Salvador, você acha que eu teria deixado isso acontecer? O que eu acho imperdoável é que você não enxergou que mais de a metade dos entrevistados são negros: os professores, os ativistas americanos, as mães…
Atenciosamente,
Gel Santana
Produtora Sem Descanso,
Olá Gel!
Primeiramente, eu gostaria de deixar claro que obviamente acredito que não era a sua intenção o “embranquecimento” que eu cito no texto. Como vc mesma disse, por ser uma negra nascida na periferia de Salvador, tenho total certeza que você seria a primeira a querer que isso não acontecesse.
Em segundo, a meu ver, o fato de mais da metade dos entrevistados serem negros não impede automaticamente que esse tipo de questão técnica aconteça. Na verdade, a grande quantidade de entrevistados negros foi o que me chamou a atenção para a “iluminação equivocada”.
Por fim, o problema que eu aponto ocorre especialmente nas cenas externas e nas entrevistas nos Estados Unidos, gravadas, aparentemente, com menos recursos do que os talking heads das personagens principais do filme. Essa questão me chamou bastante a atenção exatamente pelo tema do filme e pela forma bastante elucidativa com a qual ele foi tratado. Entendo as dificuldades em fotografar a pele negra (consequência de muitos dos equipamentos usados terem como “padrão” a pele branca, o que por si só já diz muito da exclusão de pessoas e vozes negras do cinema), e por isso esperava de um filme centrado em figuras e narrativas negras que isso não acabasse configurando um dos pontos negativos da obra.
No mais, reitero que tenho total consciência que essa não era a intenção nem sua, nem do diretor. Fica aberto o debate caso você queira comentar sobre a minha resposta ou sobre o assunto de maneira mais ampla.
Atenciosamente,
João de Queiroz