Em teatro musical, a primeira cena é fundamental para ditar o fôlego da peça, de modo que uma abertura fraca exige que o restante do espetáculo consiga compensar a experiência. Por outro lado, uma abertura potente garante o interesse e fascínio do público inicialmente, mas pode correr o risco de sucumbir ao êxito ou ao fracasso no restante da história. Felizmente, “Uma Linda Mulher, o Musical” consegue reunir qualidades elevadas em todos os quesitos do teatro já em sua abertura com a música “Bem-vindos a Hollywood”, algo que vem a se desdobrar magistralmente no restante do espetáculo.
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A peça é uma obra de arte em movimento, que revive a magia do clássico filme de 1990. A soma da direção artística de Fred Hanson com a musical de Jorge de Godoy e a versão brasileira de Victor Mühlethaler resultaram em uma produção teatral fascinante em que é impossível não se render à sua grandiosidade.
A história versa sobre a prostituta Vivian Ward que devido a obra do acaso é contratada pelo executivo Edward Lewis, para lhe fazer companhia por uma semana. Vivian, que mora com a amiga também garota de programa Kit de Luca, está com o aluguel atrasado, o que a faz aceitar a proposta de Edward, cujo acordo é o ocultamento do trabalho dela. Conforme os dias passam e eles se conhecem, Vivian se encanta com o mundo refinado de seu contratante, e Edward começa a ser cativado pelo modo leve de enxergar a vida que a personagem apresenta. Nos instantes finais, após Edward contar a um amigo que Vivian é uma prostituta, esse amigo comenta com ela, o que a faz sentir que o acordo inicial foi desfeito e ir embora da vida dele. Como todo clichê de amor, ambos se dão conta de que se amam e Edward vai atrás dela.
As duas horas e meia do espetáculo trabalham a relação do dinheiro com quem o possui em abundância e o mundo em que ele falta, simbolizado respectivamente pelo padrão de vida de Edward, que ostenta sua fortuna morando em apartamentos de luxo, viagens, clubes da alta elite etc., e Vivian, que deve o aluguel e tem um histórico familiar em que não lhe restou um caminho para o estudo, como salienta em diversas cenas, sendo educada pelas ruas.
Os acontecimentos e minúcias são muito bem dispostos e construídos no primeiro ato, de modo que o segundo, embora perca o vigor inicial, finaliza as tramas e não se demora mais do que o suficiente para isso. A exemplo, o amor de Edward e Vivian se constrói gradativamente, dia a dia, cena a cena, sem o recurso mágico do amor à primeira vista ou, na cena final quando o executivo percebe que a perdeu afetivamente e corre atrás dela, o roteiro deixou essa construção pavimentada em diversos momentos anteriores, o que torna a cena crível e esteticamente bela.
A peça conta com diversos cenários, cuja impecabilidade assinada por Adam Koch representa os subúrbios de Hollywood, as lojas de grife, o elegante quarto de hotel, a ópera etc., em que as cores vibrantes e plataformas móveis se articulam com uma velocidade condizente à história. As cores são vívidas, algo tradicional de teatro infantil, o que Adam deve ter aderido justamente por “Uma linda mulher” se erguer a partir de clássicas histórias de princesas, em especial Cinderela, como citado na peça. Infantil, mas não infantilizado, dado o glamour que os cenários possuem. No mesmo compasso de qualidade está o trabalho de iluminação de Cory Pattak, que complementa a cenografia, mas atende o espetáculo de modo independente, com luzes vibrantes e coloridas.

Acerca dos personagens, a ênfase se dá na vida de Vivian Ward e a partir do seu ponto de vista ocorre o desenrolar da história. Edward também é o protagonista, mas está, conforme a hierarquia dramática, abaixo de Vivian. Kit de Luca, embora desfrute de pouco tempo de palco, tem um arco narrativo, pois começa a história de uma forma e termina como outra pessoa. Complementar aos principais, encontra-se o coro, cujos personagens interpretados se alternam conforme a necessidade do roteiro, se alternando de cidadãos comuns à alta elite.
Jarbas Homem de Mello incorpora a elegância e a sofisticação de Edward Lewis, cativando o público desde o momento em que entra no palco. A expressão facial sutil, gestos precisos e modulação vocal contribuem para a construção de um retrato vívido e autêntico do personagem, o que ganha mais destaque nas cenas do segundo ato, onde o ator precisa expressar a vulnerabilidade do papel.
A atuação de Thais Piza como Vivian Ward não apresenta nenhuma falha e é uma joia rara no teatro musical. Thais é divertida, entrega todas as emoções de Vivian com muita habilidade, além de saber trazer sua presença ao palco com segurança. Sua voz, aliada à habilidade de dançar e interpretar, requisitos essenciais para esse tipo de espetáculo, mas quase raros nessa qualidade atualmente, possuem um brilho único. Ademais, é muito nítido o quanto ela se diverte com o papel, sendo, indubitavelmente, a escolha perfeita.

Como dito, a peça aborda como o dinheiro estrutura a formação da personalidade das pessoas. Vivian não o possui, mas tem como traços característicos a generosidade e a empatia. De todos, é a personagem mais humana. Contudo, a entrada de Edward em sua vida e o acordo estabelecido a inserem no mundo da alta sociedade, o que se impõe como um teste de valores morais para a personagem.
A cena da compra de roupas ilustra bem como essa estrutura opera. Pouco antes de Vivian sair para fazer as compras, após Edward emprestar o cartão ilimitado, ela conversa com Kit de Luca e revela não querer gastar o dinheiro dele com mais do que precisa. Quando vai à uma determinada loja de grife, é mal recebida e tratada como uma prostituta, como revelado por suas roupas. Ao relatar isso para Edward, ele vai com ela em diversas outras lojas, a presenteando com roupas caras. Ao final da cena, a protagonista, agora com novas roupas, retorna à loja que a rejeitou, tratando mal as vendedoras – uma clássica cena de vingança, permitida apenas pelo dinheiro. Aqui, se antes Vivian vendia seu corpo por dinheiro, agora ela vendeu sua personalidade. O roteiro, até então, a apresentava como uma pessoa que vivia nos percalços da vida, mas honesta e íntegra, mas essa cena só não constitui um furo de roteiro porque é crucial para os instantes finais, quando o amigo de Edward a relembra que ela é uma prostituta, o que a faz recuperar sua alma.
Após a briga com Edward por esse ocorrido, o que finaliza também o contrato inicial de uma semana firmado entre eles, Vivian retorna ao subúrbio onde dividia o apartamento com Kit de Luca, mas agora a protagonista já não é a mesma pessoa, decidindo retomar os estudos e traçar novos planos pra si. A amiga também não é mais a mesma, pois observando Vivian decide traçar um novo objetivo: virar policial. Assim, fica demarcado que as duas buscarão ascensão social pelos próprios trabalhos, algo que não pode ser dito de Edward, que herda os bens do pai, tendo a vida já ganha e se ocupando de ser uma “máquina de dinheiro”, como executivo.
Edward, que é apresentado inicialmente como um executivo bem-sucedido de uma empresa que ganha dinheiro pela compra de empresas falidas, decide ajudar uma empresa de lazer que faliria, pelo fato de Vivian ter gostado dela, assim se tornando sócio ao invés de comprador. Isso expõe que a semana que passou com Vivian o transformou, pois altera sua percepção do dinheiro de um objeto ordinário de multiplicação para um meio de viver com qualidade, algo que sempre foi um desejo de Vivian. Esse arco é delicado pois o insere na figura do príncipe encantado que resgata a princesa/camponesa da miséria, como ele de fato o fará, mas a direção de Fred Hanson conduziu essa construção como menor diante da personalidade empoderada de Vivian. Isso faz com que o encaixe afetivo construído ao longo do espetáculo se constitua de uma troca: Vivian humaniza Edward e ele, a partir de sua posição no jogo privilegiado do dinheiro, facilita os desejos dela.
Diante de tudo isso, é inegável afirmar que “Uma linda mulher, o musical” se destaca como uma obra-prima teatral que não apenas entretém, mas também provoca reflexões sobre valores e relações sociais. Todos os aspectos que envolvem o espetáculo são primorosos e o público certamente pode se encantar com o magnetismo artístico que começa a se despedir do Teatro Santander.

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