O musical “Funny Girl, a garota genial” foi aguardado com muito entusiasmo por uma geração de fãs do clássico espetáculo da Broadway, que teve como intérpretes célebres da protagonista Fanny Brice nomes como Barbra Streisand e recentemente Lea Michele. A montagem estreou no Teatro Porto, em São Paulo, na segunda metade de agosto e finalizou no dia 19 de novembro no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro.
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A peça apresenta a história da desajeitada comediante Fanny Brice, que mora no subúrbio de Nova York com a mãe e sonha ser uma atriz famosa. Ajudada pelo dançarino Eddie Ryan, que tem uma paixão oculta por ela, Fanny introduz seu humor natural nas apresentações que faz em um pequeno teatro, o que chama a atenção de Florenz Ziegfeld, dono de um luxuoso teatro que a convida para trabalhar com ele. Durante o processo de ascensão artística, Fanny conhece o sedutor Nicky Arnstein, com quem se envolve e casa posteriormente. À medida em que ela atinge o sucesso, seu casamento começa a ruir e ela tem de escolher entre uma carreira promissora e bem-sucedida ou em salvar seu casamento.
O texto original foi escrito por Isobel Lennart e a versão brasileira teve a assinatura de Bianca Tadini e Bob Merrill. Com direção de Gustavo Barchilon, o espetáculo de quase três horas foi reduzido para 110 minutos, o que em muito prejudicou o desenvolvimento do arco dos personagens. Fanny, por exemplo, tem uma evolução sem de fato ter algum conflito narrativo significativo que a impulsione a realizar seu sonho de atriz, de modo que o desenrolar dos acontecimentos não cria uma trama, mas um caminho pacífico de transição para o sucesso. Além disso, Nicky Arnstein não chega a ter um trabalho de personagem para além de um estereótipo de marido abusivo, ocultando a crise psicológica e moral que se encontra no papel. O motivo de sua alteração de ânimo – sua falência – transforma o gentil cavalheiro em um personagem sem escrúpulos sem uma causalidade com força o suficiente para ser justificada. Apesar disso, o desenvolvimento de Eddie Ryan, de apagado apaixonado por Fanny a uma posição de destaque não o altera, mas o expande, um grande acerto. Somado a isso, a alteração do final com a remoção da cena da música “My man” e a reapresentação de “Don’t rain on my parede”, que ganha um novo contorno, é um rompimento importante que indica uma leitura contemporânea da peça, que não entende a mulher como sujeita às demandas da masculinidade.
O palco possuía dois andares: no primeiro, abaixo, ficava o palco propriamente, que concentrava as cenas dramáticas e as constantes transições de cenário, assinados pela Natalia Lana. No segundo, ficava a orquestra, mas cenas mais curtas aconteciam ali, sempre em diálogo com o palco principal. O ritmo temporal da peça atrapalhou grande parte da apreciação do cenário, que pelas constantes mudanças ganhava um efeito quase descartável. Entretanto, ainda que a velocidade tenha ditado as transições da cenografia, ela atende os lugares que são representados em cena, mesmo que esfumados.
Como já esboçado anteriormente, a peça orbita em torno da carreira de Fanny Brice, que está inserida no topo da hierarquia dramática. Ela recebe o apoio da mãe, Sra. Rose, que diferente do texto clássico, apresentada como uma mãe controladora, aqui a apoia, escolha certeira da direção, embora tenha pouco tempo de palco. Forma-se um triângulo amoroso com Fanny no topo, que lida com a paixão de Eddie Ryan por ela, personagem cômico, mas que acompanha grande parte de sua carreira e a incentiva, e com Nick Arnstein, o galã que ela almeja inicialmente conquistar e posteriormente vem a se casar. Os demais personagens, Florenz Ziegfeld, Sra. Strakosh, sra. Meeker, Emma, etc., são pensados enquanto típicos, isto é, cujas poucas características são tradicionais, como as amigas fofoqueiras, o diretor renomado rígido etc., sem possuírem um arco narrativo.
Fanny Brice é uma comediante e não é estranho assumir que quem a interprete seja engraçada, o que não é possível dizer acerca da atuação de Giulia Nadruz. As expressões faciais de Giulia pouco se alteram conforme as demandas do texto, mas as vocais e corporais são apresentadas com muita qualidade. Sua atuação é razoável e ela possui uma forte presença de palco, de modo que as performances musicais são bem executadas, assim como sua interação com os outros personagens do elenco. Entretanto, o humor, traço crucial para a caracterização, nitidamente, não foi seu forte, sendo ajudada apenas pelos contextos na maior parte dos momentos e, às vezes, nem isso, o que prejudica substancialmente sua personagem.
Giulia consegue interpretar Fanny, Vânia Canto dá vivacidade à Fanny. Vânia possui um bom humor e carisma, expressões faciais muito demarcadas e uma presença de palco cativante. Sua voz é potente, mas sua postura corporal não é muito vária em alguns momentos do espetáculo. Vânia é muito divertida e em muito contribui para a comicidade da peça, tornando o texto apenas algo pequeno em relação à qualidade de sua interpretação. Diante disso, é de surpreender ser a alternante e não a oficial.
Quanto ao ator Eriberto Leão, que interpreta Nicky Arnstein, é um dos poucos casos de ator bom em um roteiro fraco. Fosse a caracterização de Nicky trabalhada ao longo do espetáculo pelo roteiro, certamente Eriberto Leão teria tido mais destaque, pois emprega, em todos os níveis expressivos, uma atuação impecável. Em uma cena, por exemplo, está sorridente, gentil, um arquetípico gentleman, e de um quase absoluto nada, o roteiro o transforma em um homem cruel, sem criar condições sustentáveis para tal.
Stella Miranda poderia ter feito todos os papeis. A atriz, além de versátil e engraçada, domina com maestria os poucos momentos de palco que tem. Modula, com exemplaridade, a voz, o corpo, as expressões faciais, a presença cênica, as relações com os demais artistas, os timings cômicos e dramáticos. A atriz esbanja talento e sua atuação como a quase apagada sra. Rose é uma aula de interpretação.
Como supracitado, o corte expressivo do roteiro em muito atrapalhou o desenvolvimento de quase toda a ação dramática do espetáculo, em especial, a narratividade, de modo que o texto parece ter recorrido apenas ao essencial para contar a história proposta – características de contos infantis. O que salva a experiência teatral certamente são as canções, pois a versão brasileira das letras, acrescida de arranjos instrumentais é digna de louvor, bem como as coreografias e o coro.
Ainda que todos os acontecimentos sejam dispostos sem barreiras significativas para a protagonista, o que dá à peça apenas o tom de “apenas espere o tempo passar, pois tudo que precisa vai acontecer”, a alteração da cena final desenha e representa o novo movimento em prol da autonomia feminina, algo que Fanny certamente foi em seu tempo e que hoje parece estar alinhada ao avanço social da representação. Embora o texto tenha estreado na Broadway em 1964 e conte a história de uma comediante do final do século XIX, é inegável perceber a atualidade que possui ao representar a dificuldade de aceitação de mulheres como comediantes. Os últimos anos, em que pautas sociais têm conseguido caminhar alguns passos, incluem mais mulheres no stand up, por exemplo, embora o humor ainda seja predominante pelo universo cis e hétero masculino. A atualidade do roteiro frisa esse espaço, pois no original, após Arnstein ir embora, Fanny sofre, como se sua carreira dependesse da aprovação do ex-marido. A nova versão rompe com o texto original e circunscreve a nova maneira com a qual as mulheres devem ser vistas.
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