Antes de proceder a qualquer análise, é imperativo salientar que, aos olhos dos espectadores versados em filmes de guerra mais convencionais, pode parecer peculiar, em uma primeira instância, o fato de que “Underground – Mentiras de Guerra” se encontra, desde o seu início, imbuído de música e celebração. A narrativa desenrola-se durante a segunda guerra mundial, abordando questões políticas, sociais e humanas inerentes ao conflito. Emir Kusturica, no entanto, concebe seu filme, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, com elementos de fábula, desprovendo-se do realismo tanto na condução como no argumento.
Assim, durante um bombardeio que arrasa Belgrado, os camaradas Marko (Miki Manojlovic) e Blacky (Lazar Ristovski) deslocam-se pelas ruas da cidade entoando canções e deleitando-se com bebidas, enquanto uma orquestra os acompanha em um ininterrupto concerto musical.
Os dois parecem alheios às vicissitudes do momento, aproveitando, com um viés histrionicamente pronunciado, suas vidas, não obstante a destruição e a morte que se desenrolam à sua volta. As interpretações excessivamente teatrais dos atores, que recorrem a uma maquiagem proeminente para adquirir semelhanças com palhaços circenses, contribuem significativamente para a caracterização destes personagens que parecem alheios à realidade bélica que os cerca. Com esses elementos extravagantes, e como se fosse uma celebração carnavalesca, Kusturica constrói a sua narrativa social e política, apoiando-se em um surrealismo digno de Fellini. A ótica do cineasta sérvio transborda de humor, sarcasmo e denúncia, notadamente quando Marko, mesmo após o desfecho do conflito, aprisiona um grupo de pessoas em uma espécie de abrigo subterrâneo, ludibriando-os ao afirmar que a guerra ainda está em curso. A sua intenção reside no lucro, visto que esses indivíduos produzem armamentos, acreditando que agem sob o comando do presidente Tito e em prol da resistência contra os nazistas, enquanto, na realidade, essas armas são negociadas no mercado negro. Contudo, o propósito preeminente consiste em manter Blacky fora de ação, ao passo que Marko desfruta da companhia de Natalija (Mirjana Jokovic), que igualmente contribui para a perpetuação da farsa.
O triângulo amoroso em “Underground – Mentiras de Guerra” desenrola-se em meio ao caos de duas guerras, permeado por abundante música e entretenimento dentro do abrigo subterrâneo, enquanto o tempo avança. O espectador, imerso nesse contexto, é convidado a ponderar acerca das falsidades proferidas pelos governantes para justificar seus anseios de poder e domínio, ao passo que o enganado povo procura viver a vida, entregando-se às festividades para escapar ou, simplesmente, negligenciar a realidade que incessantemente se apresenta. O filme, datado de 1995, aborda a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Bósnia, todavia, mantém uma notável contemporaneidade, visto que em 2023 o mundo observa perplexo, em tempo real, como Israel cria um inimigo fictício para legitimar o extermínio do povo palestino. Por conseguinte, a obra de Kusturica deveria ser incluída no currículo escolar, com o intuito de alertar os alunos de que não devem se tornar as futuras e iminentes vítimas das inverdades proferidas por aqueles que almejam apenas a barbárie. Resta saber se esses estudantes estarão receptivos à mensagem ou se encontrar-se-ão em uma fase alienada da realidade, entregando-se a devaneios fabricados.
Este filme foi exibido durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.