A fragmentação da memória em Walden – os diários de Jonas Mekas
Munido de sua Bolex 16 mm, Jonas Mekas usou imagens e sons registrados entre 1965 e 1969, em ordem cronológica, em seu filme diário. O título Walden remete ao livro de Henry David Thoreau, cuja proposta/visão de mundo é pautada no viver simples, voltado para a natureza e contemplação. Contemplação que permeia todo o filme: Mekas é um olho, uma câmera, observador, nunca o eu. Sua subjetividade se revela através do olhar, pela ausência.
Na primeira parte do filme a fotografia tem cores frias, esmaecidas, que remetem a certa melancolia e ao desbotamento, como toda memória carrega um pouco de esquecimento. Um filme diário fragmentado como são as memórias, não linear, embora cronológico. Recortes de alguns frames ou poucos segundos de registro de uma mesma cena. O filme é, explicitamente, uma sequência de fotos – como as memórias são sequências selecionadas de frames mentais.
Crianças, folhas, cachorro, a casa, as árvores ao redor da casa. Alternância entre planos abertos como quadros de paisagem e focalização de detalhes e miudezas organizados pelo artista na montagem. Tudo molhado de chuva. E a chuva, conforme a teoria semiótica e seu uso histórico associado ao campo das emoções, mergulha em afeto todos estes personagens e cenas. Chuva, sendo água, é a emoção que cobre todas aquelas memórias azuis e já algo distantes.
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Em dado momento, o contraste e a saturação na fotografia aumentam, como um pigmento mais forte aplicado à tela, como se em alguns momentos as memórias do diário fossem mais vívidas, ou mais recentes. Sabendo da cronologia, é natural que seja assim. A chuva passou, mas a natureza permeia tudo. A câmera é instável, a aleatoriedade aumenta, como se aquela memória estivesse sendo perseguida, mas já escapando entre os dedos (os olhos já não alcançam).
Na segunda parte, quando da festa agora em tons quentes, uma ruptura. Mais do que os personagens anteriores, o tema é o movimento. O movimento da dança é o protagonista. Não há foco especial em nenhuma pessoa, o vídeo se torna confuso, como as lembranças da noite anterior em que se bebeu demais. Os frames de mulheres que parecem desconhecidas para o observador, um cartaz do Velvet Underground, Andy Warhol. Ali está revelado o contexto / o entorno / de Jonas Mekas – seu métier. Os artistas de vanguarda que despontaram naqueles anos, contemporâneos à geração beat, os momentos imediatos após as revoluções estudantis de 68.
Formato
A Kodak comercializava o filme 16 mm para gravações domésticas/amadoras. Com o tempo, porém, acabou sendo muito utilizado para documentários, filmes experimentais e por cineastas independentes até os anos 80.
A escolha desse formato diz muito sobre os diários: uma forma de relatar a vida da maneira mais simples, visão defendida por Mekas na obra – o prazer da amizade, as estações do ano, seu local no mundo (Nova York), o cotidiano que se apresenta já nostálgico por ser bom. Então o diário como meio de preservar a memória que lhe é cara. A vida, por si só, como preciosidade. O lirismo incontornável da composição em todos os seus aspectos revela ainda mais o afeto contido naquelas memórias. E impressionante generosidade em partilhá-las.
Repetição e Silêncio
A repetição tanto de imagens quanto nas narrações remete ao duplo conceito de memória de Bergson. Por um lado, há um tipo de memória relacionada à ação e à repetição (o cotidiano da casa); de outro, uma memória ligada à singularidade daquele instante irrepetível (a festa). O filme-diário, fonte de imagens-lembranças não tem preocupação com uma aplicação prática ou utilidade. É a própria celebração da vida que está em questão.
Para evocar o passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar. (BERGSON, 2006, p. 90)
Acompanhado pelo acordeão, ouvimos palavras cantadas em alguma língua oriental e um fragmento em inglês “protect New York”. Em seguida, começa a narração: “Falar distrai”, Mekas diz, “falar isso distrai, enquanto silêncio e trabalho recordam e fortalecem o espírito”. Continua: “enquanto silêncio e trabalho recordam e fortalecem o espírito uma vez que uma pessoa sabe o que lhe foi dito em seu benefício, não precisa mais ouvir ou falar, mas colocar em prática, silenciosa, cuidadosa e humildemente. Não se deve então procurar coisas novas. Não se deve então procurar coisas novas que servem apenas para satisfazer o apetite exteriormente. Não se deve procurar coisas novas que servem apenas para satisfazer o apetite exteriormente, embora não sejam capazes de satisfazer.
Essa repetição, na narração dos diários de Jonas Mekas, pode ser relacionada com as imagens do vídeo, previamente apresentadas, no procedimento de feitura de um diário. Primeiro, pensa-se no dia que passou, depois, tira-se conclusões sobre ele. Assim como as imagens se repetem, como fragmentos que se repetem e se completam, as palavras se repetem se repetem se repetem, com acréscimos. Porque a repetição talvez seja necessária para uma elaboração de significado, uma transformação de significado, uma construção de significado. Assim como se visita as mesmas lembranças muitas vezes, Mekas busca as mesmas palavras e lhes atribui sempre alguma sequência nova. Quem já releu seu próprio diário sabe que cada nova releitura é feita com um novo eu.
Os sons do filme, vozes, som do metrô, ruídos das ruas, trechos de Chopin e outros, como a vida é cheia dos significativos e insignificantes sons. Tudo é familiar, por ser memória – todos nós temos muitas delas. Ao mesmo tempo que é muito particular, singular, por seu tempo específico de juventude em Nova York, seus amigos, Andy Warhol, membros do The Velvet Undergound, conhecidos e desconhecidos que não partilhamos.
O artista é apenas um olho. A única ação do olho é observar. O vídeo é todo mudo, no sentido de nenhuma ação tomada pelo narrador/observador. É como um sonho onde somos apenas expectadores. Ele não interfere.
“O sono é um estado, um poço em que mergulhamos, em que estamos ausentes. Essa ausência nos emudece.” (DE MELO NETO, p. 18)
Quando fala, são as ideias de um livro, palavras externas à ele. Sua voz e seu olho estão presentes, mas não há tomada de ação, em oposição ao cinema clássico narrativo, sobre o qual comenta Marcelo Ikeda: “Utiliza a memória como recurso funcional, utilitarista nos contornos de uma narrativa que usa o recurso ao passado para justificar uma ação no presente, os filmes-diários de Jonas Mekas nos parecem apontar para uma outra possibilidade da memória, para as características da “memória por excelência” bergsoniana, composta de fragmentos irrepetíveis e singulares, cuja função essencial é nos fazer sonhar e, enquanto sonhamos, somos livres, vivemos.”
A aura em Walden
O próprio artista explica seu processo: “Manter um filme-diário é reagir (com sua câmera) imediatamente, agora, neste instante: ou você o recebe agora ou não o recebe. (…) Para obtê-lo agora, por acaso, exige-se o domínio total de suas ferramentas (neste caso, a Bolex): é preciso registrar a realidade à qual reajo e também o meu estado de sentimento (e todas as memórias) como eu reajo. O que também significa que eu tive que fazer toda a estruturação (edição) ali, durante as filmagens, na câmera. Todas as imagens que você verá nos diários são exatamente as que saíram da câmera.”
Hoje, qualquer computador ou celular com acesso à internet consegue acessar, ou seja, se aproximar da obra em questão; das memórias e particularidades produzidas pelo olho de Jonas Mekas, decorrência do que Benjamin aponta como uma decadência da aura:
Essa decadência assenta em duas circunstâncias que estão ligadas ao significado crescente das massas, na vida atual. Ou seja: “Aproximar” as coisas espacial e humanamente é atualmente um desejo das massas tão apaixonado como a sua tendência para a superação do carácter único de qualquer realidade, através do registo da sua reprodução. Cada dia se toma mais imperiosa a necessidade de dominar o objeto fazendo-o mais próximo na imagem, ou melhor, na cópia, na reprodução.” IKEDA, Marcelo. Os filmes-diários de Jonas Mekas: as memórias de um homem que se filma. Revista Rumores USP, São Paulo, 2012.
Embora, por sua forma de diário (ninguém pode reproduzir uma vida ou uma memória), a aura ainda está presente no sentido de que a autoria é inegável. A voz, os amigos, a vida de Mekas está na obra. E por ser sua vida, há algo de sagrado – ou de aura – ali. E que não pode ser quebrado pela mera reprodução às massas. O que se observa nos próprios apontamentos de Benjamin, acerca do mesmo tema:
Como sabemos, obras de arte mais antigas surgiram ao serviço de um ritual, primeiro mágico e depois religioso. É, pois, de importância decisiva que a forma de existência desta aura, na obra de arte nunca se desligue completamente da sua função ritual. Por outras palavras: o valor singular da obra de arte “autêntica” tem o seu fundamento no ritual em que adquiriu o seu valor de uso original e primeiro. Este, independentemente de como seja transmitido, mantém-se reconhecível, mesmo nas formas profanas do culto da beleza, enquanto ritual secularizado.
Se, por um lado, Mekas utiliza um modo de operação do registro – a ferramenta para uso amador, com conteúdo prosaico, cotidiano – isso não o prejudica em nada em produzir obra integralmente poética. É impossível apontar a perda da aura no sentido Benjaminiano, pois, de acordo com palavras do autor, o valor singular da obra de arte “autêntica” tem o seu fundamento no ritual em que adquiriu o seu valor de uso original e primeiro.
Nota-se, portanto, a presença de aura em Walden, em sua construção e resultado, a partir de sua função e uso, à revelia das técnicas empregadas em sua produção e no próprio conceito de defesa de uma vida simples, enquanto obra de arte.
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