O passado, a luta e o luto se tornam preciosidades pelo olhar de Margarida Cardoso
Quem assistiu aos filmes “Natal 71” (1999), “Kuxa-Kanema” (2003) e “A Costa dos Murmúrios” (2004) consegue perceber a relação da realizadora Margarida Cardoso com o colonialismo português. Quando jovem, ela, a mãe, a irmã e a avó se mudaram para Moçambique por conta do pai, militar da força aérea que foi chamado para uma comissão no local. A família continuou a morar em cidades do continente africano até 1974. Em “Yvone Kane”, com co-produção brasileira, Margarida volta o seu olhar para a África pós-independência e mostra como viver num ambiente onde a guerra perdurou por tanto, situação que afeta a vida pessoal de suas três personagens centrais.
Rita (Beatriz Batarda), após perder uma filha, vai ao encontro da mãe Sara (Irene Ravache) que reside na África. Lá, ela resolve investigar a verdade sobre a história de uma ex-guerrilheira e ativista política, Yvone Kane, morta sob circunstâncias suspeitas, que foram encobertas pelo governo.
Margarida retoma sua parceria com Beatriz, impecável em “A Costa dos Murmúrios” (2004) – filme baseado no romance homônimo de Lídia Jorge – e a atriz também não deixa nada a desejar na pele de Rita. O pesar e a angústia se mantém presente em seu olhar do início ao fim, trazendo sempre à tona a constante lembrança de que a perda de um filho é irreparável. O mais interessante é que o seu sofrimento é contemplativo e não exagerado. Ainda que imbuída de muita determinação para conhecer a história de Yvone, Rita continua melancólica – É importante destacar que este não é o foco principal da trama, mas um fator importante da construção da personagem que contribui diretamente ao clima de solidão e angústia que perduram durante todo o filme.
Mas o destaque principal é a responsabilidade de Ravache na pele da portuguesa Sara. A atriz está um escândalo! Os anos de revolucionária definitivamente pesam nos ombros da personagem como uma sede de vida que não volta mais. A doença parece não ser um fator determinante, surge quase que como aspecto redundante para Sara. A descrença no que foi um dia o seu ideal já foi a sua verdadeira morte. Para Sara – segundo uma de suas falas – “Yvone não fazia parte do movimento, ela era o movimento”. Fica claro que o assassinato da ativista foi um marco determinante, além disso, o território em que cresceu e reside está em ruínas o que torna sua vida apática. Para Sara lhe basta existir, ela abre mão de ser. O único sopro de vida que lhe resta é lutar pelo caráter de um menino criado em sua casa. Acusado de participar do abuso de duas meninas que vivem no local onde a médica trabalha. É o único momento em que o espectador a vê de fato lutando por algo.
O silêncio é constante. As sequências longas e lentas se assemelham com a vida de tal forma que colocam o espectador dentro da rotina de Rita e Sara com muita facilidade. Fica difícil desgrudar da tela porque a sensação é de fazer parte daquele dia a dia. A fotografia não passa de uma paleta de cor pastel inserida num ambiente arruinado, característica única de um território pós conflito. A trilha sonora quase que ausente torna aquelas personagens assumidamente humanas, lançando um tipo de encenação bem mais próxima do naturalismo.
A beleza da fotografia se dá pelo efeito de um quase encontro, os enquadramentos repetidas vezes ficam no meio termo do que querem contar. O reflexo de uma personagem próxima da sombra de outra, como se todo encontro estivesse tão próximo e ao mesmo tempo tão longe. A câmera encontra o distanciamento através da união, o que também é a relação entre Sara e Rita – mãe e filha que se encontram após uma perda irreparável, vivem juntas, mas ao mesmo tempo parecem estranhas uma a outra.
“Yvone Kane” é uma personagem baseada na história de Josina Michael que, quando jovem, fugiu de Moçambique para lutar pela independência de seu país. Josina é considerada modelo de inspiração do movimento de mulheres e questiona-se quantos já ouviram falar sobre ela por aí. Mais uma prova de que a história apaga a intimidade de ativistas políticas e as mulheres são as primeiras a desaparecer.
O filme começa num cemitério e termina num enterro, simbólico e ao mesmo tempo literal – apesar de não ser um enterro comum como todos imaginam. É necessário desenterrar para enterrar. Sair de um lugar para se reconstruir. Este é o papel de quem estuda história e também de quem faz cinema. Margarida assim o faz de forma literal e também simbólica.
Por Rayza Noiá
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