“Ver como pessoas se sentem tão ameaçadas por um vídeo que anuncia a data de lançamento de uma série e mostra uma mulher negra (educadamente) pedindo para não ser ridicularizada mostra claramente o motivo de eu ter feito esta série. Eu quero que aqueles que são tradicionalmente invisíveis na cultura pop comecem a serem vistos. E quero que aqueles que estão dispostos a estender sua empatia para experiências diferentes entendam mais profundamente a humanidade dessas pessoas (os alunos negros retratados na trama).” Justin Simien.
A série de 10 episódios, inspirada em filme de mesmo nome, repercutiu antes mesmo de ser lançada. Algumas pessoas a consideraram anti-branca e cancelaram sua assinatura da Netflix como forma de protesto, sem a terem assistido.
No primeiro episódio, a voz do programa de rádio “Cara gente branca”, com o irônico nome Samantha White, explica que a tese de racismo reverso não faz sentido: “Cara gente branca, entendo que ser reduzido a uma generalização com base em raça é uma experiência nova e devastadora para alguns de vocês, mas esta é a diferença: minhas piadas não prendem seus jovens em níveis alarmantes, nem tornam perigoso você andar no próprio bairro, mas a de vocês, sim. Quando zombam ou nos menosprezam, vocês reforçam um sistema existente. Policiais segurando uma arma olhando para um negro não veem um ser humano. Eles veem uma caricatura. Um bandido. Um preto. Então, não! Vocês não podem se fantasiar de nós no Halloween e alegar ironia nem ignorância. Não mais.”
Para o antropólogo Kabengele Munanga, o racismo não é apenas um comportamento individual. É um sistema de dominação social e seu objetivo sempre foi o mesmo: garantir a hegemonia do grupo racial dominante. O racismo é uma ideologia que depende da sua naturalização tanto por parte da vítima quanto por parte de outros cidadãos que discriminam e se acham superiores. Esse ciclo vicioso perverso pode e deve ser rompido. Com excelente roteiro, é isso que “Dear white people” faz. Ao apresentar vozes diversas que sofrem o racismo, cria-se a oportuna condição de debatê-lo sem simplificações.
Oito séculos antes de Cristo, a poesia de Homero mostra, por exemplo, a distinção entre gregos e bárbaros – diferenciação marcada pela hierarquia cultural que privilegia a perspectiva do narrador, a perspectiva grega. O olhar de Homero sobre “o outro” ainda pode ser lido. Ao contrário, o relato a partir da voz daquele que foi definido como bárbaro não é retomado, não está presente no que se constituiu como a nossa tradição.
- O que funda a hegemonia cultural?
Os discursos e práticas são construídos a partir de alianças entre as diferentes correntes sociais. No entanto, quanto menos consciente for o grupo acerca das relações de poder estabelecidas, menor será a sua chance de negociar presença na criação dos valores daquela sociedade. No Brasil, Paulo Freire distinguiu a educação que prepara para a repetição de um modelo daquela que dá ferramentas ao cidadão para buscar melhorar o mundo ao seu redor. Nesse aspecto, o paradigma eurocêntrico do pensamento iluminista precisa ser atravessado pelo encontro com outras diretrizes culturais. É nesse sentido que as teorias contemporâneas da educação têm sido direcionadas e buscam enriquecer o ensino através da soma de saberes de diversas referências, incluindo o estudo da história e cultura africana e afro brasileira.
Assistir à série é perceber as sutilezas cruéis que atravessam a maneira como os negros vêm sendo representados. Como rótulos oprimem subjetividades! Ao encararmos o problema de frente, em sua multiplicidade, humanizamos o que tem sido coisificado por séculos de estupidez baseada em privilégio branco.
Precisamos desestruturar os fundamentos racistas que atingem, com violência física e emocional, mais de 50% da população brasileira. Através dos diálogos ricos e instigantes, é inspirador ver a cultura pop se sensibilizando para o que realmente importa.
Por Carmen Filgueiras
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