Lourenço Mutarelli é um dos quadrinistas mais importantes do Brasil e é também um dos meus preferidos quando o assunto é HQ, independente do país de origem. Infelizmente, por ter um estilo pouco convencional de roteiro e arte, suas produções tiveram algumas dificuldades nas editoras por onde passou. Mesmo assim isso não o impediu de publicar essa obra sensacional que é A Trilogia do Acidente, a saga do detetive Diomedes.
Sim, estamos falando de uma típica história de investigação com inspiração no cinema noir e mesclada com situações claramente brasileiras. Diomedes é um policial aposentado que precisa fazer seus “bicos” como detetive particular a fim de manter uma renda financeira aceitável. Já dá pra notar aqui que o personagem é o tipo perdedor de carteirinha, daquele que tudo na vida deu errado, tem uma vida miserável e uma família desmanchada. Se apega aos seus vícios em cigarros e bebidas enquanto se esforça pra ser um bom detetive, apesar de não conseguir resolver nenhum caso. O interessante da apresentação detalhada de Diomedes é que Lourenço utiliza uma série de recursos narrativos diferentes pra introduzir o personagem.
“Se eu fosse culpar alguém toda vez que eu fracasso não ia ter gente suficiente no mundo.” (Diomedes)
Os personagens em geral possuem muito mais defeitos do que qualidades. Isso é meio que uma amplificação da realidade, muito comum nos trabalhos de Mutarelli. Na realidade a maioria dos personagens beira a bizarrice, com fortes deturpações morais e sociais. Uma coisa interessante no primeiro álbum é justamente a apresentação sistemática dos personagens em capítulos conforme a trama evolui.
A história se inicia quando um cliente vem ao escritório do detetive contratá-lo para descobrir o paradeiro de Enigmo, um mágico que animou sua esta de aniversário de 6 anos. Até que Diomedes é bom no que faz e rapidamente consegue localizar um circo decadente onde o mágico foi visto pela última vez. Só que as coisas vão sair do controle porque nem tudo é o que parece nessa história.
A Trilogia do Acidente é bem dividida em três arcos de tramas distintas, que tem como fundo a investigação de Enigmo. A trilogia virou uma quadrilogia por conta da quantidade de páginas e tempo que extrapolou o previsto para o último volume, por isso ele foi dividido em duas partes. Por isso também a obra foi apelidada de Trilogia do Acidente.
O roteiro é complexo e se transforma numa novela policial que facilmente se encaixaria num longa metragem. Lourenço conhece muito bem as técnicas narrativas e sabe aplicá-las com primor. Nos dois primeiros arcos a história não perde o dinamismo mesmo quando intercala ritmos mais acelerados com momentos cadenciados. Pontas sutis que são deixadas pra trás vão se ligando conforme a história flui e isso a torna ainda mais rica. No terceiro arco o roteiro já se arrasta de forma um tanto cansativa.
A arte de Mutarelli é um capítulo à parte. Sim, ela é suja e grosseira pra refletir as mazelas dos personagens e situações da trama. Mas também é assim porque na época o autor tomava remédios fortes que faziam sua mão tremer constantemente. Não sei dizer se é intencional, mas o traço também lembra muito o estilo dos quadrinhos da contracultura como Gilbert Shelton e o próprio Crumb. Por falar nisso, também é notável como muitas situações da história lembram as desventuras de Harvey Pekar. Destaco aqui a harmonia visual em toda a obra, principalmente no alto nível de detalhes em muitos quadros.
Muitas sequências são bem escuras justamente para forçar um clima noir nos quadrinhos. Lourenço também consegue introduzir diversas referências e homenagens à literatura, quadrinhos e cultura pop de forma, portanto é necessária uma leitura atenta para identificar tudo. Outros elementos recorrentes nas obras de Mutarelli são os maços de cigarros e baralhos de tarô.
Outra coisa comum em seus trabalhos é encontrar situações reais pelas quais ele mesmo passou, e isso acontece no terceiro álbum com sua passagem por Portugal. Na verdade Lourenço insere a si próprio na história interagindo ativamente com Diomedes e ainda citando pessoas próximas à sua convivência. Com isso o roteiro acabou distanciando-se do mistério de Enigmo, ficando um tanto artificial e costurado para fazer os links com a trama inicial.
A Trilogia do Acidente foi publicada originalmente em três álbuns: O Rei do Ponto, O Dobro de Cinco e A Soma de Tudo (dividido em duas partes conforme já mencionado). Todos foram lançados pela Devir, mas devido a alguns conflitos entre o autor e a editora, os volumes foram tirados de catálogo, sendo encontrados apenas no mercado paralelo.
Em 2012 a Companhia das Letras, através de seu selo de quadrinhos, lançou um encadernadão “Diomedes – A Trilogia do Acidente” com mais de quatrocentas páginas. Destaques dessa edição vão para o letreiramento da famosíssima Lilian Mitsunaga, que reescreveu os textos com base na caligrafia original do próprio Mutarelli e um texto do autor explicando o contexto em que produziu a saga!!
Título: Diomedes – A Trilogia do Acidente – 2012
Editora: Quadrinhos na Cia. – Edição especial
Roteiro e Arte: Lourenço Mutarelli
Páginas: 432 páginas
Tercio Strutzel ama ler, escrever e desenhar histórias em quadrinhos. Foi editor do fanzine Paralelo, mas hoje quase não consegue tempo pra desenhar. Se especializou em Presença Digital, mas tem diversos projetos fervilhando na mente. Está sempre em busca de atividades culturais por São Paulo. Também é serial reader de Ficção, Fantasia e Terror e viciado em séries.
