O ator Rodrigo Mercadante, membro e um dos fundadores do grupo de teatro Cia do Tijolo, conversa com a gente sobre “Guará Vermelha”, peça baseada no romance “O voo da Guará Vermelha”, da escritora Maria Valéria Rezende. Rodrigo, que interpretou Dom Quixote no espetáculo homônimo da Cia Um e recentemente foi responsável por um dos quadros do espetáculo “Isto não é uma democracia”, do Coletivo Yorick, interpreta agora “Rosálio”, personagem analfabeto que é apaixonado por livros.
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Arthur Macedo: Como que é uma transição tão curta, de poucos meses, do estudo de personagem? Você faz o protagonista, o Rosálio. Como que foi pra você incorporar esse personagem?
Rodrigo Mercadante: É uma delícia, porque é um livro lindo e é um personagem muito especial. Eu acho que ele está numa linhagem desses personagens meio tocados pela graça. Ele é um homem de tanta bondade, desenhado como uma figura tão bondosa, que a gente tem dúvida se ele até existe. Meio a linhagem do Dom Quixote, de “O idiota” do Dostoiévski, essas figuras que são meio tocadas pela graça, que são quase palpáveis. Então é muito gostoso porque é uma figura muito bonita, de uma ingenuidade muito grande. Ele é uma pessoa boa.
A.M.: Ele é um personagem analfabeto. A Cia do Tijolo tem esse nome justamente em homenagem ao Paulo Freire, uma questão da alfabetização. Como que foi pra você essa adaptação da linguagem do grupo de vocês com a linguagem do personagem?
R.M.: É uma decorrência natural porque a gente trabalha com a ideia do Paulo Freire há muito tempo. Desde 2008 a gente está em cima dessa história porque a gente trabalhava com o Patativa [do Assaré] que também tem um processo de alfabetização muito singular: Ele estuda só seis meses numa escola regular, depois se alfabetiza sozinho. Ele passa por um processo de consciência do seu lugar social, de ser sujeito da História, de engajamento político, ao mesmo tempo em que ele vai se alfabetizando e construindo seus poemas pra sua comunidade até se tornar um poeta de relevância nacional. Então, a partir do Patativa, a gente desenvolve os trabalhos da gente, que começam a esbarrar nesse lugar, nessas figuras brasileiras que são ligadas, são poetas, são ligadas a uma espécie de religiosidade cristã de esquerda, são figuras humanistas, ligadas à ideia de socialismo. A Maria Valéria é isso, estava junto com Dom Hélder Câmara, com Paulo Freire, próxima da teologia feminista, teologia da libertação, esse é o movimento dela. A pergunta fundamental é: “Eu quero aprender a ler e a escrever. Para quê? Para quê eu quero ter posse da cultura letrada?”. Porque a gente pode pensar numa sociedade autoritária como a brasileira que, quando você aprende a ler e a escrever isso te coloca numa situação superior hierarquicamente às outras pessoas. “É pra isso que eu quero aprender ou ensinar a ler?”. Não é um valor em si, acima de qualquer coisa. A gente tem a cultura oral que é extraordinária, mas “por que que eu quero aprender a ler e escrever?”, para de posse do código me juntar aos meus, usufruir de tudo que a humanidade construiu a partir do trabalho e criar um mundo mais justo.
A.M.: Qual mensagem que a peça tem que levar para quem vai assistir?
R.M.: Não sei se tem que levar uma mensagem propriamente, eu acho que ela tem que levar uma experiência. No caso do meu personagem, ele tem uma constatação fundamental, que é uma provocação do ator e não está no livro que é: “Eu achava que quando eu aprendesse a ler e escrever cada pergunta ia achar sua resposta”. Evidentemente, isso é uma provocação porque a gente sabe que não é [assim]. Eu achava que tinha algum segredo sobre mim e sobre o mundo que poderia ser revelado ali, depois você vê aquilo que não: é um exercício coletivo de fazer perguntas e respondê-las. Isso não está nos livros, os livros estão presentes nisso. É essa experiência fundamental da possibilidade do encontro, de você encontrar o encaixe. Tem o coletivo, tem o individual, mas a gente queria trabalhar, pela primeira vez, nessa possibilidade do encaixe: Não é o amor perfeito, não é o amor ideal, não é nada disso. É o encaixe de duas figuras. Ele não questiona o que ela faz para viver, ela não questiona o que ele faz, são duas pessoas na condição de indigência social máxima que encontram uma molécula de sentido. Então, todo o resto do discurso passa pela leitura e pela literatura, passa por escrever a própria história.
A.M.: O Rosálio toca o Rodrigo onde?
R.M.: No amor pelos livros. Esse foi o primeiro gancho: “Nossa, me identifico muito”. Eu sou apaixonado fisicamente pelos livros.
A.M: Nesse ponto a gente relembra o “Dom Quixote”, que também é um leitor. Eu achei muito legal e gostei muito de você naquela peça. Acho que nessa você está refazendo um Dom Quixote brasileiro.
R.M.: Também uma figura que parece que não pertence a esse mundo. Porque Dom Quixote não pertence à Modernidade que está entrando [naquele período]. O Rosálio não pertence a esse mundo.
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