Segunda metade da década de 60: Vai ao ar na TV japonesa a única animação de “Ougon Bat“, o Morcego Dourado. O anime teve seu relativo sucesso na época e foi exportado para vários países, entre eles o Brasil, onde recebeu o título de “Fantomas“, isso é: até misteriosamente cair no profundo esquecimento. Essa é a investigação de como o primeiro super-herói japonês desapareceu sem quase deixar vestígios. Bem vindos à história de Fantomas, vida e queda.
Primórdios
A televisão no Japão certamente não era a mesma em 1967. Foi apenas no início da década que as coisas começaram a mudar para o mercado de animações. Não só Osamu Tezuka, criador de “Astroboy” (1963), deu espaço para que os animes fossem exibidos pela primeira vez em blocos de 30 minutos, como também inaugurou os princípios do gênero shounen e também de toda uma forma de se desenhar personagens — com seus olhos grandes e expressivos como hoje em dia.
Se o leitor mais atento olhou para as datas, a conta não bate. Afinal, como pode Fantomas ser o “primeiro herói japonês”, como diz o título da matéria, e Astroboy, por exemplo, ter sido lançado antes? É aí que a história começa a ficar obscura: Se obras atualmente costumam ser adaptadas de mangás e light novels, Ougon Bat é um caso ímpar, pois suas origens remontam ao período pré-guerra como personagem do teatro de rua tradicional japonês, Kamishibai, onde personagens e cenários são representados feitos à mão em papel.
Nascido em 1931, seria ainda mais antigo, portanto, que o próprio “Superman” (1938), e de fato o primeiro super-herói moderno japonês (e, para alguns, até mesmo do mundo). Muito de seu material original se perdeu com o tempo, sobretudo devido à Segunda Guerra Mundial, embora hoje em dia continuem sendo exibidas apresentações do lendário morcego dourado no formato kamishibai.
Porém, falou-se, falou-se e… quem é Fantomas?
“Um mistério que só os morcegos sabem”
Durante uma expedição à Antártida, o cientista Dr. Yamatone (PT/BR: Steel) e sua tripulação se veem em apuros ao serem surpreendidos pelo ataque de um monstro marinho. Sob a urgência de resfriar os motores, devem arrumar depressa uma maneira de arrumarem água pura no meio do oceano. À bordo estão o atrapalhado ajudante Dareo (PT/BR: Gaby), e seu filho Takeru (PT/BR: Terry), que seguia viagem escondido do pai — afinal, à aventura!
A história progride e o grupo desembarca de emergência em uma terra perdida: É Atlantis. Agora juntos à Marie, sobrevivente de um naufrágio e filha de um importante historiador, o grupo se depara com um sarcófago com estranhas inscrições. Graças à garota e as anotações de seu pai, são capazes de decifrar os hieróglifos e desperta o poderoso Fantomas, um guerreiro esqueleto dourado com seu cajado da justiça e capa preta, predestinado a proteger a humanidade de um grande mal que assolaria a Terra dentro de 10.000 anos.
Fantomas então destrói o monstro em forma de mão, que foi revelado ser um robô do vilânico Dr. Nazo (PT/BR: Zero) e o primeiro episódio acaba.
A trama se segue de maneira majoritariamente episódica, sem maiores prejuízos para aqueles que optarem por uma ordem aleatória, com raras exceções mais ou menos importantes, como o último episódio. Algum problema mirabolante ocorre, os heróis se veem envolvidos e suspeitam do Dr. Zero, que perverte a ciência para causar destruição. Fantomas é chamado de uma a três vezes — quase sempre por Marie, a donzela em apuros. Há uma luta contra um kaiju ou robô de Zero e, se há ainda algo para se resolver, os mocinhos terminam o trabalho de Fantomas e agradecem-no por ser o protetor da justiça.
Acontece que Fantomas é uma criatura cujos limites até a Marvel duvida: Se materializa quando e onde quiser, é superforte, muda de tamanho, controla o tempo, controla raios de destruição, voa e sabe-se-lá o que mais. As lutas costumam ser o ponto alto do episódio, com a audiência podendo se perguntar qual vai ser a próxima maluquice que Zero irá aprontar e como Fantomas vai chutar seu traseiro — sempre com sua tenebrosa risada, para anunciar que a palhaçada acabou.
Não há perigo real, por mais absurda seja a encrenca. Fantomas estará de vigília para ajudar os protagonistas. Por outro lado, o show, ainda que relativamente infantil — e isso também nos conta um pouco de sua época — não tem qualquer escrúpulo em matar figurantes “serialmente”. O que importa ao fim é que o mal sempre perca e às vezes o arrependimento de um vilão-suporte.
“Eu era pequena e assistia Fantomas. Hoje não consigo achar alguém que assistiu naquela época. Eu era uma criança estranha; adorava ver aquela caveira de dar medo rindo e lutando contra o Dr. Zero — ele era todo assustador, mas ele era do bem. Acho que isso ensinava que as aparências enganam, né?”
Depoimento pessoal da mãe (55) do autor da matéria.
Ainda somos os mesmos?
Já teve aquela sensação de ter assistido ou lido algo anteriormente? É porque de um jeito e de outro, você já viu. Tudo é uma reinvenção, alguns só vão conseguir camuflar essa sensação melhor em algum grau. Fantomas tem o privilégio de estar no meio do caminho entre um modo de contar histórias ainda não esquematizado e o moderno. Ainda que muitas coisas aqui sirvam mais para o gênero mais infantil no futuro, é com os shounen que isso ficará mais evidente, porque Ougon Bat faz parte da construção de não só um modelo de heroísmo como de sociedade.
Não há muitas duvidas aqui que, depois de Fantomas, Takeru é a estrela do show; sempre se metendo onde não é chamado e arriscando a vida pelo bem coletivo, a despeito de, como criança, essa responsabilidade ser totalmente alheia a si – entretanto, não e como se seu pai lhe impusesse muitos limites.
Nesse sentido, Ougon Bat explora as fantasias infantis sem se levar muito a sério; Take, inclusive, dirige, manuseia armas e toma importantes decisões militares de igual para igual com adultos. Takeru é curioso, engenhoso, corajoso e trabalha como o aspecto “yang” do grupo. É ele que se engaja nas situações mais perigosas e salva a pátria quando o destino chama.
Por que mencionar tudo isso? Pode não parecer óbvio à primeira vista, mas ainda que algumas formas de se pensar o mundo já estejam um tanto quanto ultrapassadas em comparação à transmissão original, o modelo — mesmo que escancaradamente simples — continua muito parecido, embora já se ouça algum ranger de ferrugem. Como assim? O papel secundário (até figurativo) da “donzela”, aqui representado por Marie, porém que podia se referir à maioria das garotas em shounen (Naruto, Fairy Tail, Dragon Ball… Naruto!).
Os exemplos não acabam aí: Que tal então o protagonista herói-a-todo-custo, que deve se contrapor ao mal maior simplesmente porque é o certo a se fazer, nem que tenha que arriscar a própria vida de maneira estúpida? — algo que se diz se iniciar com Tezuka e segue até hoje como a maior convenção do shounen. Voilà. Temas importantes como o uso responsável da ciência, defesa do meio ambiente, perda de postos de trabalhos para as máquinas e outros também são abordados com algum nível de superficialidade, mas aqui mais que nunca lembram a função primeira dos “animes para garotos jovens”: Educar.
Para você, 50 anos no futuro
Chegando nesse ponto do texto, talvez se levante a pergunta “Por que assistir algo tão antigo?”. Bom, é verdade que não há uma comunidade ativa debatendo lançamentos, nem produções multimilionárias e tampouco a disposição da tecnologia mais recente, como é o caso de “Kimetsu no Yaiba“. Porém, ser uma obra de cinquenta anos atrás de forma alguma é um atestado de má qualidade, tampouco baixa relevância. As razões para ir atrás são diversas e podem mudar de pessoa para pessoa — no exemplo do autor, reconectar com sua mãe através do anime de sua infância — mas se o otaku mais extremo quer um motivo, simplesmente um pouco de tudo que viu até então (e verá) está em Fantomas.
Desde os personagens típicos, passando pelo alívio cômico de “grandão comilão e atrapalhado”, até o modelo de se narrar, as telinhas de hoje em dia devem muito ao implacável morcego dourado e sua (sádica) risada. Colocando em outros termos, Osamu Tezuka pode ser o pai do shounen moderno, mas ele não pavimentou esse caminho sozinho, e Ougon Bat faz parte desse processo.
Querendo ou não, o teste do tempo se mostra implacável: Alguns títulos são (com justiça ou não) infames, como “Suzumiya Haruhi no Yuutsu” (2006), outros o nível de crime contra a humanidade é tamanho que são objetos de estudo de época, vide “Canção do Sul” (1946),. E, apesar de devorado pela passagem dos anos, o anime continua espirituoso cinco décadas após seu lançamento, dessa vez, ainda mais potente, pois, tão tipicamente encapsulado na sua época, carrega em si um (talvez amargo) lembrete oculto de que para fazer história não é necessariamente preciso ser lembrado.
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Boa matéria. Vale citar que a distribuidora Cult Classic lançou a série de anime do Fantomas completinha em DVD aqui no Brasil. E ela se encontra na íntegra no YouTube! Outras curiosidades sobre o Fantomas, é que a série de anime se baseia livremente em um longa-metragem tokusatsu lançado nos cinemas japoneses um ano antes; o próprio Osamu Tezuka fez um mangá do personagem, nos anos 1950; e, no final dos anos 1990, o herói quase ganhou um reboot, pelo estúdio de animação AIC, o mesmo de El Hazard e Tenchi Muyo.
Aqui o link para o vídeo do YouTube com o trailer do filme:
https://m.youtube.com/watch?v=ZrjQQAUiWEs
Fala, querido! Muito bom ter você aqui o/
Obrigado pela contribuição!
É uma pena que muita mídia da série tenha se perdido, mas fico feliz que ainda tenha gente que valoriza a história assim!
Me pergunto que surto foi esse da suposta adaptação natimorta dos anos 90, huahuaha, porque o trailer é muito interessante e me lembra as coisas que eu assistia nos anos 2000.
Abraços,
Nick.
Avisa a senhora sua mae que tem mais um que assistia e que assiste ateh hoje, graças ao Youtube. Tambem tenhi 55 anos….
Olá,eu nunca entendi o por que nunca fizeram um filme do Fantomas, fizeram de Godzilla,e o Fantomas com sua trilha sonora super envolvente, seria mágico com a tecnologia que temos nos dias de hoje.
Obrigado por sua matéria, muito boa 👏🏻👏🏻👏🏻
Hey, Luiz!
Obrigado pelo carinho! É uma pena mesmo; houve um projeto descartado para uma animação dos anos 2000 da série (Shin Ougon Bat), além de filmes antigos (alguns são mídias perdidas, infelizmente) com atores reais. Penso que seria muito interessante repensar o herói para os dias de hoje — como já fizeram com o próprio anime original — e é uma pena que não tenhamos em vista nenhum projeto no momento.
Um abraço!