Foi Apenas um Acidente é um jornada de vingança e discussões morais
Filme após filme, Jafar Panahi reafirma sua posição como um dos cineastas mais relevantes da atualidade e, sobretudo, como um dos principais opositores ao regime autoritário que governa o Irã — ainda que o próprio diretor tenha declarado, durante uma conversa com o público na 49ª Mostra de Cinema em São Paulo, que “Foi Apenas um Acidente”, seu novo longa, não possui caráter político. É possível que essa afirmação tenha sido feita com o intuito de destacar outras camadas da obra, mas o impacto da conclusão devastadora do filme revela uma história profundamente politizada.

O componente político do roteiro, escrito pelo próprio Panahi, está inserido na trama de vingança conduzida por Vahid (Vahid Mobasseri), que, por acaso, cruza o caminho do homem que acredita ser o agente do governo responsável por sua tortura durante o período em que esteve encarcerado. Vahid decide sequestrá-lo, exigindo uma confissão antes de consumar sua vingança. No entanto, ele não tem plena certeza de que capturou o verdadeiro algoz, e por isso convoca outras vítimas para ajudar na identificação inequívoca. A partir daí, entram em cena a fotógrafa Shiva (Mariam Afshari), os noivos Golrokh (Hadis Pakbaten) e Ali (Majid Panahi) — vestidos para um ensaio pré-nupcial — e o instável Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr).
O grupo então embarca em uma jornada marcada por dilemas éticos e situações que flertam com o absurdo. Panahi constrói uma atmosfera de tensão permeada por humor sombrio, característica recorrente em sua filmografia. Os personagens carregam dores profundas, mas agem de maneira desajeitada, gerando uma comédia em que o riso é genuíno, embora desconcertante — como se o espectador se questionasse sobre o motivo de rir diante de algo tão perturbador.

Ao longo da narrativa, o sequestrado é conduzido de um lugar a outro, enquanto os sequestradores debatem questões morais em diálogos habilmente construídos. O texto se destaca como o elemento de maior sofisticação artística em “Foi Apenas um Acidente”, embora não seja o único, já que Panahi orquestra sua narrativa com precisão, utilizando rimas visuais que evocam a presença constante da morte — tanto aquela vivida no passado quanto a que se pretende infligir no presente.
Um exemplo marcante ocorre na cena em que o suposto torturador é colocado no porta-malas de uma van: os sons de corvos acompanham toda a sequência, e, após a partida do veículo, as aves pousam exatamente onde ele estava estacionado. Neste momento, a câmera de Amin Jafari permanece estática por alguns segundos, fixando a imagem na memória do espectador.
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Diante de tantos méritos, é plenamente justificável que “Foi Apenas um Acidente” tenha conquistado a Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano. Igualmente evidente é o seu teor político, ainda que Panahi insista em negá-lo. A interpretação da obra, no entanto, cabe a cada espectador, que poderá avaliar se o cineasta está equivocado ou não em sua declaração — afinal, há quem defenda que, uma vez lançado, o filme deixa de pertencer exclusivamente ao seu autor e passa a ser propriedade simbólica do público que o consome e ressignifica.
Foi Apenas um Acidente foi visto durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Vídeo: Divulgação/Neon

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