Clarice Lispector, uma das principais autoras brasileiras, sacramentou sua despedida desse mundo com um dos mais bonitos romances da literatura, que batizou como “A Hora da Estrela”. Lançado em outubro de 1977, a obra foi a última escrita por Lispector que, pouco mais de um mês depois, faleceu em decorrência de um câncer.
40 anos depois, a editora Rocco convidou a escritora Paloma Vidal para invadir as memórias de Clarice, agora guardada em caixas no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Paloma conta sua experiência na crônica “Antes da Hora”, que abre a edição especial comemorativa da lendária obra, que é impresso com capa dura e traz diversos manuscritos originais da autora ao longo do livro. É possível observar, inclusive, a inconstância de suas anotações – provavelmente devido à dor que sua doença lhe trouxera -, às vezes com uma grafia bonita, às vezes com garranchos quase ilegíveis.
Paloma conta também como os fragmentos escritos por Clarice (e descobertos pela escritora e professora universitária que encabeçou o desafio) não seguiam uma linearidade cronológica. Foram escritos em tempos diferentes, mas mesmo assim, trazia em contraste uma sequência da própria história, com início, meio e fim. Lispector apresenta sua narrativa coesa através desses manuscritos encontrados, contando a história de Macabéa, a protagonista da obra, que sai do sertão e chega ao Rio de Janeiro.
Ainda sobre as relíquias de Clarice guardadas pelo Instituto Moreira Salles, Paloma comenta sobre a diversidade encontrada naquelas caixas, desde bilhetes, frases, lembretes, até talões de cheques. A última coisa escrita pela autora, no dia 7 de dezembro, também fora encontrada. Era seu último bilhete, escrito no Hospital da Lagoa, onde faleceu. A análise parecia ser de uma urgência em precisar escrever, ainda que sob condições adversas, e isso a faz ser uma das escritoras mais importantes da literatura mundial.
A Hora da Estrela frequentemente é uma obra estudada obrigatoriamente nas escolas e universidades e mostra a trajetória de Macabéa, a jovem nordestina e heroína insignificante, através de seu alter ego, o narrador Rodrigo S.M.. Sua narrativa é complexa e apresenta ao leitor os seus constantes conflitos existenciais bem como do próprio narrador. Clarice traz consigo três abordagens importantes nessa obra: a filosófica, a social e a estética, cada uma levantando questões relevantes, comuns à época, caracterizada como a terceira fase modernista da literatura nacional. Mais do que uma busca por uma vida melhor, Macabéa buscava a si mesma pelos olhos de Clarice. A separação da sociedade em grupos, o alcance da comunicação entre os seres humanos e a importância do ato da criação nas pessoas são os eixos nos quais a autora equilibra sua obra digressiva.
O próprio personagem e narrador se cortam e se interrompem o tempo todo: essa é a genialidade de “A Hora da Estrela”, que permite que a mais fragmentada das narrativas consiga impactar o leitor, explanando dois universos pertencentes à figura humana: a trajetória de uma figura pobre e sofrida, e a trajetória introspectiva de descobrir a si mesmo, numa contínua reflexão.
Como costumamos dizer que a arte imita a vida, Macabéa também atinge sua epifania às vésperas da morte. Apenas ali ela tem seu momento de iluminação e descobre a grandeza de ser. Clarice, assim como sua heroína sofrida, também tem seu momento epifânico ao concluir a obra, que refletia seus próprios tormentos.
O estilo da autora é marcante, sempre buscando usar o fluxo da consciência do leitor, que é conduzido a mergulhar dentro de si. Esse recurso é explorado em outras obras além de “A Hora da Estrela”. Clarice faz, como sempre, bom uso de sua linguagem moderna, marcada por metáforas, por frases defeituosas – como o vocabulário restrito de Macabéa -, por associações insólitas e inusitadas, transitando pelo plano metafísico e também pelo inconsciente.
A edição comemorativa foi lançada agora no início de maio e pode ser comprada pelo próprio site da editora Rocco nas versões impressa ou digital, e também em outras livrarias do Brasil.
Por Patricia Janiques
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