José silva não acreditava em fantasmas até se tornar um.
Não era o tipo flutuante ou Gasparzinho de fantasma, era mais como uma imagem mal copiada e fraca de si mesmo, tremeluzente e incomodamente nua.
Ele tinha 54 anos e era funcionário publico nos escritórios da prefeitura. Divorciado e com dois filhos adultos, um que entrara para a marinha e o outro que virara cantor, ele viva sozinho em um apartamento de quarto e sala quase no centro da cidade, mal tinha amigos e os poucos com quem tinha contato regulamente viviam pedindo dinheiro para ir beber.
Apesar de levar uma vida relativamente pacata, a própria morte era um absurdo incrível: ele estava dirigindo em alta velocidade quando teve uma parada cardíaca e capotou o carro. O corpo saiu quase sem nenhum arranhão, mas o coração já havia parado quando levaram-no para o hospital.
Olhando para o próprio funeral fora do corpo tudo parecia meio engraçado: as faces chorosas, os olhos vermelhos, o jeito triste de algumas pessoas contrastando com o jeito despreocupado de outras. Por algum motivo não conseguia entender qual era a graça da situação, mas ele riu baixinho com medo de alguém ouvi-lo, sabia que era uma ideia boba, no entanto, ele estava morto e ninguém podia ouvi-lo.
Coçou a própria cabeça e depois se perguntou como poderia coçar a própria cabeça, depois se perguntou como poderia sentir o que quer que fosse após mais um momento percebeu que era absurda até mesmo a ideia de pensar, afinal ele estava morto. Estava morto mesmo, e por algum motivo sabia disso, parecia ser o tipo de coisa com a qual não se cometiam erros. Estava morto e não ligava de modo algum para aquilo, parecia inteiramente lógico que estivesse morto e não se importasse nem um pouco.
Ele suspirou e sussurrou baixinho a palavra “morto”.
Decidiu-se então afastar-se do caixão por um momento e caminhar do lado de fora da sala onde o funeral ocorria, sabia que o próprio corpo não iria sair andando pela cidade. A figura deitada, repousando no lugar dele e que por algum motivo não conseguia identificar como sendo si mesmo estava arrumada em um terno azul escuro elegante. Mas se não se identificava com o corpo, o que era ele então? Se não era corpo, o que compunha identidade?
Do lado de fora pode ver que aconteciam mais enterros por ali.
Andou na direção de um deles esperando encontrar outro fantasma, mas todas as salas estavam compostas apenas de “pessoas vivas”, ele achava que poderia usar aquela expressão agora que era uma “pessoa morta”, e saiu caminhando das salas cheias que encontrou decepcionado.
Foi caminhando entre lápides desgastadas e outras mais novas com flores ao redor que percebeu como era sem significado tudo aquilo. Ele mesmo fora a muitos enterros e sempre achara sem lógica as homenagens que eram prestadas aos mortos, eles não poderiam ouvir, argumentava na época, então não faria diferença. E realmente os mortos não podem ouvir o que os vivos falam, apenas enxerga-los como planos sobrepostos, mundos que se encontram por algum motivo.
Funerais e enterros era para os vivos, ele raciocinou.
Enquanto estava andando no meio das lápides acabou encontrando, ao longe, uma outra figura nua, que era mais real do que os amigos e parentes no funeral, e por isso soube que se tratava de outro fantasma.
Era uma mulher que devia ter por volta dos 25 anos ou mais, embora fosse difícil determinar a quanto tempo ela estava morta ou a idade real, já que todos pareciam bem conservados enquanto fantasmas, até mesmo ele.
Ela parecia divagar solitária nas raízes expostas de uma árvore solitária que irradiava vida em um lugar tão cheio de morte, tão estéril. Estava concentrada em um grupo de formigas que fazia seu trajeto por entre a grama verde e esmeralda até o tronco da árvore e de lá para dentro do tronco, escavando com minúsculas patas um mundo microscópico.
– Oi. Parece que você morreu também. – ele comentou como uma forma de dizer bom dia.
– Pois é, isso acontece com todas as coisas por aqui, tudo morre, alguns mais de uma vez. – ela disse olhando-o no fundo dos olhos.
– Eu sou … Eu era José Silva. E você?
– Maria das Dores. Morri em 74 e você?
– Morri hoje, ou ontem. Não sei, algumas coisas estão sumindo da minha cabeça.
– Acontece aos poucos, depois de um tempo fica só o importante e algumas memórias. Depois até isso some, mas se isso sumir você vai um tempo depois. – ela comentou com simplicidade.
– Como assim você vai depois? – questionou o recém-morto
– Eu já vi isso algumas vezes. Os fantasmas simplesmente somem, não sei pra onde vão depois. Isso aqui parece uma espécie de limbo, ou entre-mundos onde alguns se perdem. Inclusive eu e você.
– Se perdem? Mas e Deus ou algo assim? Ele não deveria nos julgar ao céu ou inferno? Nos revelar o conhecimento infinito e nos colocar em um lugar legal?
– Parece que ele tem coisas melhores para fazer do que cuidar da Terra e dos mortos. – rebateu a fantasma sem dar muita atenção ao recém-chegado.
– O que você ainda faz aqui? Não visita sua família ou algo do gênero não?
– Ás vezes. Mas é meio chato, eu não posso ouvir o que eles falam e quando sei que estão falando de mim é só choro e caras tristes para todos os lados, além de que me deixam um pouco com inveja estando vivos e fazendo coisas, não tem muito o que fazer por aqui, sabia? É bastante chutar coisas imaginárias e assobios fantasmagóricos.
– Bem, se quiser posso te fazer companhia.
– Você não vai durar por aqui, homens como você nunca duram. As crianças ficam um pouco mais e mesmo assim desaparecem depois de um tempo, às vezes só permanecem, especialmente os mais jovens, até que os pais arranjem outros filhos. – ela parou um pouco e suspirou. – as pessoas são bem maldosas, e as crianças choram às vezes aqui, sozinhas sabe. Eu tento ajudar, mas é difícil ganhar a confiança delas.
– Por que você acha que não vou durar muito aqui? – José interrogou ofendido.
– Eu tenho uma teoria de que só ficam aqui nesse entre-mundos os que não abandonaram por completo a vida, e uma das âncoras no mundo dos vivos são as memórias dos amigos e parentes. Assim você ainda “vive” de certa forma com essas pessoas, mas quando elas te esquecem ou a memória não é mais a mesma os fantasmas somem, talvez eles vão definitivamente para o mundo dos mortos, eu não sei, ainda estou aqui por conta da minha mãe.
– E por que eu seria facilmente esquecido?
– Dá para ver pela sua face e pelo seu jeito que você era um homem de poucos amigos e pouco chegado à família. Eu costumava ser muito boa julgando pessoas nos anos 60, me achava o máximo, falava o que queria, até a ditadura é claro, e vivia livre, leve e solta para o desgosto da minha mãe, que tentava tomar conta de mim. Acabei morrendo de overdose e é uma das poucas coisas que me lembro de quando estava viva.
– É uma história triste. – declarou o homem. – mas eu não acho que vá durar pouco, era próximo de meus filhos da melhor maneira que pude ser e meus irmãos e primos ainda falavam bastante comigo.
– Não, você se engana aí. Quando pensa em relações está pensando em sentimentos, mas aqui a memória é o que vale, e a memória pouco tem haver com sentimentos, exceto pelo fato de despertá-los em momentos inoportunos. O que conta aqui é memória e lealdade. São como chamas lentas que nos iluminam aqui, paixão é uma grande fogueira que queima bonita e rápida e some com você.
– Bem, já que vou desaparecer e morrer uma vez mais dê uma volta comigo por aqui e me conte mais um pouco sobre o que já viu nos anos em que esteve aqui. – pediu o fantasma.
A mulher pareceu considerar a proposta por alguns segundos e então deu de ombros e levantou-se com graciosidade.
– Não acho que vá fazer mal. – ela disse. – Já estamos mortos e não há muito o que se fazer depois disso, é bem sem perspectiva.
Ela riu e começou a caminhar, José Silva foi atrás e percebeu que além de funerais serem para os vivos, morrer não parecia ser tão ruim.
Por João Scaldini
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