O documentário “À Margem da Imagem” discute uma questão por muitas vezes ignorada por quem aprecia fotografias periféricas. Quem são os personagens retratados? Eles são objeto do nosso entretenimento reflexivo? É só chegar e invadir os espaços? Pelo que concluímos no documentário, não é bem assim.
Há a ideia de que o espaço dos pobres, excluídos, daqueles que são vistos como à margem de nós, a boa sociedade, é público, de todos, está sempre aberto. Emocionante o trabalho do Sebastião Salgado, certamente. Mas por quê? Há uma certa glamourização da pobreza que as classes mais altas intelectualizadas reproduzem sem muito se dar conta. “Olha como eu sou sensível por chorar com essa foto de uma mãe que tem fome alimentando os filhos” que traduz-se como um “olha como eu sou empático”. A empatia está nas nossas lágrimas que assistem o horror da miséria humana bem de longe? Há quem acredite que sim.
O documentário de 2003, dirigido por Evaldo Mocarzel, ousa questionar o seu próprio lugar enquanto obra cultural. Ao mesmo tempo que oferece uma perspectiva crítica, não foge da inevitável metalinguagem em que se encontra. Uma das personagens principais, a, voluntária de um centro para moradores de rua, relata um episódio com o fotógrafo Sebastião Salgado. Ele havia chegado em uma entrega de sopa. Quando vislumbrou uma moça negra com um machado na mão cortando frango, prontamente preparou a câmera. “Eu tenho crachá da Folha de São Paulo” repetia ele. A freira Ivete não deixou: “não, aqui você não tem autorização, aqui eu mando o povo pegar a sua máquina e jogar no fogo. E aqui o povo me obedece”. Não satisfeito, Sebastião continuou “só essa negra”. Com a negativa repetida, ele foi embora xingando a freira. Na vida de Ivete aquelas pessoas tinham nome, rosto, história. Para o sensível fotógrafo elas eram objeto. Naquele dia Sebastião Salgado não fez a foto. Ele pode ter tirado muitas outras depois, mas aquela não.
É inegável que há algo de impiedoso na arte. Nem sempre é possível pedir licença, nem sempre é possível ser ético. Cada artista define até onde vai pelo bom click, pela boa história, pelo bom fragmento. Às vezes a sua câmera é apenas um trator, não muito preocupado com o que há pelo caminho. No caso de retratar pessoas periféricas, no entanto, parece haver uma concepção geral de que podemos ser invasivos, eles não ligam. O que dizemos com isso é que dignidade só é conferida a algumas classes sociais. Ninguém assume que vai chegar em um condomínio da Barra e retratar a adolescência cheia de tênia vans e algum vazio existencial. Os adolescentes dos condomínios não são de todo mundo. Mas os favelados, ah, esses são.
“À Margem da Imagem” é um filme sensível, que se permite ficar na corda bamba. Ele não quer ser bastião moral. Ele apenas nos oferece a pergunta: será que é assim mesmo? Enquanto pincela histórias fantásticas dos moradores de rua, relatadas por eles mesmos, ele se permite a ousadia de ao final exibi-lo a cada um deles. Novamente com uma câmera apontada: “e aí, o que acharam?”. Como diz o personagem um dos moradores ele esperava um final não tão pálido, tão escuro. A rua até pode parecer que é de todo mundo, mas quando pessoas moram lá ela ganha um simbolismo maior. Quando a rua não é a sua casa, melhor lembrar: devagar com o andor, que o santo é de barro, Sebastião.
Por Érika Nunes
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