“Nenhum organismo vivo pode existir muito tempo com sanidade sob condições de realidade absoluta; até cotovias e gafanhotos, supõem alguns, sonham. A Casa da Colina, desprovida de sanidade, se erguia solitária contra os montes, aprisionando as trevas em seu interior; estava desse jeito havia oitenta anos e talvez continuasse por mais oitenta. Lá dentro, paredes continuavam de pé, tijolos se juntavam comperfeição, assoalhos estavam firmes e portas estavam sensatamente fechadas; o silêncio se escorava com equilíbrio na madeira e nas pedras da Casa da Colina, e o que entrasse ali, entrava sozinho”.
Essas são as palavras de abertura do livro “A assombração da Casa da Colina”, escrito por Shirley Jackson, autora considerada como a rainha do terror pelos mestres Stephen King e Neil Gaiman. É com essa introdução que somos apresentados ao mundo da Casa da Colina e seus mistérios. Apenas nesse primeiro parágrafo, já temos uma ideia do que nos espera pela frente. Fica nítido todo o carinho que a autora e também a equipe brasileira tiveram ao preparar esse livro. Eles deixaram um página exclusiva para a introdução e abertura do livro, ditando o tom de toda a história. Uma verdadeira aula.
A obra traz uma história surpreendente e muito intrigante. Diferentemente do que o título nos sugere, o livro não é uma narrativa convencional de fantasmas. “A assombração da Casa da Colina” trata muito mais de questões psicológicas pessoais e familiares e ainda traumas vividos pelos personagens, principalmente, na infância. Virou um marco pela forma como trata do medo e como cada um dos personagens lida com seus próprios fantasmas. É uma relação profunda e intensa entre loucura e fenômenos sobrenaturais.
Tudo começa quando o doutor em filosofia, John Montague, resolve investigar casos misteriosos e ditos como sobrenaturais, que acontecem na tão temida mansão, localizada em um lugar remoto, no topo de uma colina. Pesquisando sobre a história da Casa, ele chega a uma interessante e curiosa informação: Os antigos moradores nunca passaram mais de cinco dias naquele lugar. Para entender mais de perto o que de fato acontece, ele decide convidar algumas pessoas que já viveram situações inusitadas, envolvendo fenômenos sobrenaturais e paranormais, para passar uma temporada na Casa. Entre os escolhidos estão Eleanor Vance, uma pessoa sozinha no mundo que fica encantada ao receber o convite; Theodora, que prefere ser chamada de Theo e é conhecida por sua alma artística sensitiva e Luke Sanderson, herdeiro da mansão, considerado por sua tia – a real dona da casa – um verdadeiro ladrão, mas precisava estar nessa “expedição” porque a presença de um membro da família era uma condição para ficar alguns dias na Casa.
Aos poucos, eles vão conhecendo melhor a história da Casa e de seus primeiros moradores. Ao mesmo tempo, vem a sensação de que o que começou com uma exploração apenas por curiosidade, vai se transformando em uma viagem pesada e difícil, com os piores pesadelos. Coisas muito estranhas começam a acontecer e seus limites são testados ao máximo. A vida e a sanidade de todos começam a correr risco. Até quando eles vão aguentar?!
Eleanor é a nossa personagem principal. É a partir dela e através de seus olhos que as relações são vistas e montadas. Através do foco narrativo principal da personagem, a autora nos coloca dentro dos pensamentos, nos apresentando as sensações, os sentimentos e as impressões acerca da Casa e de seus novos amigos. É uma maneira muito peculiar de envolver o leitor na trama. E super funciona.
Assim como é feito com Eleanor, a descrição dos outros personagens não é feita pelas características físicas, mas sim psicológicas. Até mesmo a Casa, depois de algum tempo, passa também por esse processo e é descrita com qualidades humanas pelo doutor Montague.
No geral, todos os personagens geram muitos conflitos na mente do leitor, cada um com seu lado bom e ruim. Mas, de todos, o Dr. Montague é o mais sensato da casa. Utilizando de alguns conhecimentos em arquitetura e desenho, o doutor explica que a casa foi projetada de forma única, onde as paredes e seus ângulos são totalmente assimétricos, causando uma grande perturbação no cérebro, quando justifica possíveis descontroles emocionais e sensoriais.
Porém, quando as coisas começam a ficar esquisitas, Eleanor é a mais atingida. Ela é a mais vulnerável e mais propensa a chamar aatenção da Casa. É frágil e sonhadora e, por isso, a Casa, vê uma certa facilidade em atingi-la e tomar conta de sua mente, deixando-a confusa e bem próxima da insanidade.
Não vemos com clareza se as coisas que acontecem são reais ou se são fruto da mente perturbada. Mas, de qualquer forma, contribui bastante para a narrativa “fantasmagórica”. Além disso, ter um personagem onisciente – sabendo de tudo o que acontece – e narrando todos os acontecimentos ao leitor, é uma forma inusitada e bastante interessante, que prende muito a atenção. E é super importante dizer que a escritora usa a escrita de forma muito bem pensada para dar ritmo à trama.
Apesar de termos Eleanor como personagem principal, com o tempo vamos entendendo que, na verdade, a protagonista é a própria Casa da Colina. Explica-se, então, o fato de ser escrita sempre com letras maiúsculas, como um nome próprio. O fato da Casa criar vida própria, reforça a teoria de que os espíritos, os fantasmas, as assombrações ou qualquer outra coisa que possa aparecer por lá são criados para desviar a atenção da verdade – o mal é a própria Casa.
A primeira versão do romance foi publicada em 1959, com o título original em inglês “The Haunting of Hill House”. Para Stephen King, foi a história de casa mal-assombrada mais próxima da perfeição que ele já leu. Alguns anos depois, algumas coisas chamam muito a atenção nessa nova tiragem. A editora SUMA trouxe uma edição muito bonita, com capa dura e bem minimalista, imprimindo assim simplicidade, além de uma diagramação inovadora. A responsável é a incrível Elisa Van Randow. A ficção científica apresentada na capa pela autora, serve como justificativa para os fenômenos que acontecem na casa.
Não podemos deixar de falar também do trabalho de tradução primoroso que Débora Landsberg fez. Trazer para o português algo tão próximo do estilo utilizado no texto original definitivamente não foi uma tarefa das mais fáceis. O inglês possui ortografia e métrica bem diferentes do que usamos aqui no Brasil. Mas Débora surpreendeu e conseguiu lindamente dar vida à obra e envolver o leitor totalmente.
E chegamos ao final!! Sem spoilers, fiquem tranquilos.
Para fechar com chave de ouro, um encerramento surpreendente e inesperado. Com a narrativa bem construída, a autora deixa a mensagem de que a Casa continuará por lá, intacta e imortal.
Shirley Jackson nasceu em San Francisco, Califórnia, em 1916. Uma mulher simples, que escrevia dentro da Fiction of Domestic Chaos, gênero que narrava suas desventuras como dona de casa. Teve o estilo de vida mudado após o casamento, quando escreveu e publicou o conto “The Lottery”, que retratava todo o submundo de uma cidade pequena dos EUA. A partir daí, começou a ser reconhecida como uma das melhores autoras de ficção que envolve terror sobrenatural. Mas como o céu era o limite, se tornou uma das principais autoras americanas do século XX, influenciando nomes como Stephen King, Neil Gaiman, Donna Tartt, Sarah Walters, Nigel Kneale, Joane Harris e Richard Matherson. Em 1959, escreveu “A assombração da Casa da Colina”, quando já sofria com graves problemas de saúde causados pelo fumo e por uso excessivo de medicamentos. Foi sucesso de vendas, de crítica e de público. Seu último livro foi “Sempre vivemos no castelo”, publicado também pela editora SUMA.
Em outubro desse ano, a Netflix lançou uma série baseada no livro – “A maldição da Mansão Hill”. Não é exatamente igual ao livro, mas tem algumas referências. De qualquer forma, vale super a pena assistir.
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