“Angola Janga” busca a história real do Quilombo dos Palmares
Costuma-se dizer que a história de uma guerra é sempre a versão de quem a venceu. Embora essa afirmação seja um tanto óbvia, afinal de contas muitas vezes sequer restam derrotados para narrar os fatos ocorridos, ela também representa um fato que pode causar grandes miopias na história dos povos. Ainda que os historiadores se empenhem em pesquisar e buscar documentações que confrontem as versões narradas pelos vencedores, nem sempre essas evidências existem. Quanto mais antigos forem os conflitos tratados, tanto mais difícil será a obtenção de materiais de pesquisa. O que sobra de fontes e materiais de estudo eventualmente são fatos isolados transmitidos verbalmente entre pequenos grupos e famílias.
Nesse contexto podemos encaixar centenas de histórias. E certamente uma que carrega consigo o ranço de ter sido contada exclusivamente pelos vencedores que fizeram questão de vilanizar ao máximo os derrotados, foi a história de Quilombo dos Palmares e um de seus principais líderes, Zumbi. Os escravos fugitivos que lá se refugiavam sequer sabiam ler e escrever, portanto jamais deixaram registros históricos escritos sobre como era a vida naquelas cercanias. De outro lado os Bandeirantes cruéis e implacáveis à serviço da corte portuguesa foram glorificados pela história enquanto os negros perseguidos ficaram retratados nos livros escolares como os grandes vilões daquela época.
Felizmente existem pessoas de bem dedicadas a questionar o status quo mesmo de circunstâncias tão arraigadas como essa. Foi o que fez o quadrinista e Mestre em História da Arte pela USP, Marcelo D´Salete, com sua bela obra de 430 páginas intitulada “Angola Janga – Uma história de Palmares”, mocambo situado na Serra da Barriga (atual Alagoas) que resistiu por mais de 100 anos. A graphic novel se divide em 11 capítulos que abordam o ponto de vista de diversos personagens históricos como como Zumbi, Antônio Soares, Ganga-Zumba, Zona, Domingos Jorge Velho e Acotirene, porém com ênfase à versão dos refugiados. A propósito o nome Angola Janga (pequena Angola) era o termo de origem banto usado pelos próprios palmaristas.
Palmares era um grande complexo formado por diversos mocambos mata adentro, sendo Macaco o principal. Embora esse vasto assentamento tenha sido construído e mantido ao longo de algumas décadas, a narrativa de D’Salete se foca nos últimos anos antes da queda definitiva de Macaco em 1694. O grande diferencial dessa obra é abordar os fatos por um ponto de vista totalmente oposto ao grafado nos livros escolares. Por meio de intensas pesquisas, o quadrinista descobriu diversos tipos de “cidadãos quilombolas” que diferem muito da versão que nos foi contada como oficial. A HQ nos mostra desde as dissidências entre as lideranças do próprio quilombo até personagens inusitados como negros e indígenas que trabalham para a Coroa Portuguesa no encalço dos palmaristas; negros de pele clara que viviam como feitores e capitães do mato; homens brancos e pobres que viviam nos Palmares; colonos que ajudavam a defender os mocambos, com os quais travavam comércio.
Os escravos que realizavam os trabalhos forçados nas grandes fazendas de cana de açúcar vinham majoritariamente de Angola e Moçambique, mas também de outras regiões africanas. Aqui chegando suas culturas e tradições foram completamente extirpadas, restando aos mocambos um local de resgate de suas origens. Em Angola Janga, publicada pela Editora Veneta em 2017, também podemos verificar o esmero de Marcelo D’Salete em retratar vestimentas, comidas, rituais, formas de organização militar e até crenças afro-indígenas.
Toda em preto e branco e carregada de alto contraste, a arte peculiar de D’Salete busca uma linguagem visual que remonta à estética das culturas africanas antigas. O traço simples e ao mesmo tempo carregado de detalhes confere um visual muito rico à cada quadro e à cada página, resultando em uma graphic novel realmente linda.
Ao final do livro, há um anexo com um material precioso sobre a história dos Palmares e da cultura afro-brasileira criada nos mocambos: mapas mostrando a extensão do quilombo, uma linha do tempo com os principais acontecimentos da guerra contra os palmaristas, estimativas do número de pessoas sequestradas da África durante a escravidão e, por fim, um glossário com alguns termos apresentados por D’Salete ao longo da obra.
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