“(…) Naquele tempo a gente era veloz e o tempo se arrastava.” (p.19)
Diz o ditado que toda história tem três versões. A de quem conta, a de quem ouve, e a verdadeira. Mas independentemente do ouvinte ou do falante (ou da verdade!), é que a “memória” vai ser sempre o cerne dessas histórias. As vividas ou não.
“Leite Derramado”, de Chico Buarque de Holanda, retrata os recôncavos escondidos da pequenez humana pelos olhos de Eulálio. Um senhor de 100 anos de idade, acometido pelos males do Alzheimer, e abandonado no leito de um humilde hospital. Eulálio é membro de uma tradicional família brasileira: Os Assumpção. E é ele quem nos conta re-pe-ti-da-men-te a queda e o apogeu de toda uma linhagem.
Narrado em primeira pessoa, a versão que temos é desse senhor que viveu um século. E ainda que não tenhamos como confiar efetivamente nas suas reminiscências, “ouvi-lo” contar toda sua vida, faz com que, de alguma maneira, sejamos cumplices de suas aventuras e desventuras.
É basicamente um monólogo. Os diálogos são apresentados como pequenos inputs dentro do reconto. E toda história é dirigida à sua filha, às enfermeiras do hospital, e a quem estiver com o coração aberto para ouvir. Somos encaminhados aos áureos tempos da monarquia, passando por um Barão da Império, um senador da República e até ao seu tataraneto, o bonitão que engabela as chiquitas nesse Rio de Janeiro.
Ademais de ser um romance no âmbito que essa descrição abarca, a obra faz com que o leitor adentre a uma viagem histórica incrível. E junto as falas desse senhor e aos nossos próprios conhecimentos de mundo, construímos de maneira muito singular, um terceiro diálogo que talvez só aconteça dentro na nossa cabeça. E se isso foi altamente intencional, podemos dizer então que Chico Buarque foi, mais uma vez, um mestre na arte de escrever.
Os capítulos são curtos e o livro só tem 195 páginas. E em todas elas somos arremetidos a momentos que ocorreram de verdade dentro do nosso contexto histórico. No entanto, essas histórias são mescladas com as memórias particulares do nosso narrador. Então fica fácil fazer uma conexão Brasil real versus Brasil Imaginário. E quiçá, juntando tudo, conseguimos entender o Brasil atual.
Além disso, a narrativa mostra-se ímpar, quando buscamos a intertextualidade com outras obras. “Eulálio Montenegro d’Assumpção, 16 de junho de 1097, viúvo. Pai, Eulálio Ribas d’Assumpção, como aquela rua atrás da estação do metrô.”(p.77); ao citar o nome completo de sua família, o senhor acaba por levantar questões que já apareceram em outras obras cujo cerne também é a memória. Vemos isso, por exemplo em “Cem anos de Solidão” de Gabriel García Márquez, que se assemelha a “Leite derramado” não só pela questão do patriarcado e da importância de falar toda a árvore genealógica na hora de se apresentar, como também, o número “100”, que parece ser quase cabalístico.
A obra foi lançada em 2009 pela editora Companhia das Letras, e apesar de oito anos já terem se passado, podemos considerar sim, um livro atemporal. Daqueles, que pelo menos uma vez na vida todos deveriam ler, não só pelo valor histórico, mas também pelos ensinamentos que só os mais velhos são capazes de nos dar.
Se formos buscar um tema central para esse livro – apesar da difícil escolha, porque são muitos – diríamos talvez, que o amor rege toda a obra. Eulálio possui uma paixão avassaladora por sua esposa Matilde – mãe de Maria Eulália, a filha que mencionamos mais acima – e esse amor é construído em cima de uma paixão de infância que cresceu junto com ele. E bem… são cem anos, pois.
Além disso, ele não passa todo o tempo relatando fatos. Os “e se…” também aparecem com certa frequência, mostrando que o personagem tem saudade das coisas que nunca viveu. E com isso, Chico Buarque em uma tacada só levanta bandeiras pertinentes que outrora são esquecidas. Como a questão do amor na melhor idade, abandono de incapaz, traições, egoísmo (…) e o Alzheimer, doença cruel capaz de fazer-nos esquecer de tudo e todos a nossa volta.
“Enfim, “Leite Derramado” retrata nossa forma egoísta e preconceituosa de enxergar nossa própria realidade.” (Lílian Gomes)
“Mas se com a idade a gente dá pra repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida. (p.184)
E para os nossos Booklanders, deixamos aqui o primeiro capítulo dessa obra incrível na voz do próprio Chico Buarque de Holanda. O vídeo foi publicado originalmente na página da Companhia das Letras no Youtube.
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