A discussão não é nova, mas se você viu o último capítulo de Shingeki no Kyojin pode ter voltado à polêmica que ganhou força com a finalização do mangá, em 2021. Attack on Titan possui inspirações (elogiosas) no fascismo? E o que isso quer dizer? Vamos analisar falas, trechos, organização narrativa e falas do próprio autor para entender a questão. Este post contém spoilers do final da série.
É necessário discutir, porém, algumas questões de antemão para nos certificar que entendemos todos sobre o que estamos falando, bem como porque representação e glorificação são coisas diferentes, mas não necessariamente se apresentam sempre da mesma forma.
Afinal, o que é fascismo?
Antes de tudo, fascismo é um termo especialmente em disputa, com a palavra retomando ao debate político muito pela ascensão de movimentos de extrema-direita pelo mundo. Isso não quer dizer, no entanto, que não se tenha um entendimento histórico da questão, de modo que possível definir esse fenômeno a partir de algumas características.
Um sistema político baseado em um líder forte, controle estatal, extremo orgulho do país e da raça, e no qual oposição política não é permitida. (Cambridge Dictionary, traduzido do inglês)
Cambridge Dictionary, traduzido do inglês por nós
Sistema ou regime político e filosófico, antiliberal, imperialista e antidemocrático, centrado em um governo de caráter autoritário, representado pela existência de um partido único e pela figura de um ditador, fundado na ideologia de exaltação dos valores da raça e da nação em detrimento do individualismo, como o estabelecido na Itália por Benito Mussolini (1883-1945), em 1922, cujo emblema era, simbolicamente, o fascio, isto é, o feixe de varas dos lictores romanos.
Dicionário Michaelis Online
Corrente política extremamente reacionária que expressa os interesses das esferas mais agressivas da burguesia imperialista, como a ditadura terrorista do capital monopolista, a qual se caracteriza pelo chauvinismo extremo, pelo racismo, pela abolição das liberdades democráticas, pela preparação e desenrolar de guerras de agressão. (Dicionário Bararan Online, traduzido do armênio)
Dicionário Bararan Online, traduzido do armênio por nós
É evidente que a discussão não se encerra em definições de dicionário — há aqueles que dedicam suas vidas pesquisando sobre o tema. Quando mencionado “fascismo” como um termo em disputa, para além disso ocorrer o tempo todo com muitas palavras do nosso vocabulário, volta-se a duas correntes: uma mais purista, e outra que pretende enxergá-lo como um produto histórico.
Pela primeira, enxerga-se fascismo senão como um movimento político restrito à Itália (e Alemanha). Em oposição a visão restrita a um fenômeno histórico isolado, o fascismo é compreendido através de uma recorrência cíclica em momentos de crise sistêmica, oferecendo soluções fáceis e de roupagem radical, as quais, porém, servem para manutenção do sistema e do poder — e dinheiro — nas mãos de oligopólios. Nesse sentido, não significa que com a derrota de Mussolini essas ideias tenham desaparecido, apenas se adaptaram a novos tempos.
Dada sua recorrência no cenário político-mundial em tempos recentes, o esvaziamento do termo e a aversão ao seu uso não soam ideias distantes. Contudo, perder de vista a despolitização como um dos fatores chaves para a ascensão desses movimentos pode ser tão danoso quanto a sua propaganda em si; tal como evitar que o vocábulo seja mal empregado, é preciso que, quando identificados tais discursos, se nomeie categoricamente pelo que são.
Representação e glorificação
O ano é 2007, e o cinema brasileiro provocou comoção que não se via desde a indicação ao Oscar (e esnobar) de Cidade de Deus anos antes; foi o lançamento de Tropa de Elite, de José Padilha — com também montagem de Daniel Rezende, do já mencionado CDD.
Com a pirataria comendo solta, inúmeras paródias, referências na tevê e mesmo expressões que entraram na boca do povo, é até difícil pensar em outras obras que tiveram impacto cultural semelhante que o longa acompanhando o capitão do BOPE, sobre a corrupção, violência policial e… — espera aí, violência policial?
Óbvio para alguns, nem tanto para outros. Tropa de Elite se volta para tratar de questões de como as situações de estresse tem impactos na saúde dos policiais, retratando com crueza as violências do cotidiano. Leituras diferentes sobre uma obra são possíveis, sabendo embasá-las, então por que é que para uma boa parte do público brasileiro Tropa de Elite é um filme sobre o irado Capitão Nascimento e o quanto ele é incrivelmente durão e macho?
Respondendo de forma simples, há um abismo entre criticar algo abertamente num argumento (roteiro, canção…) e representá-la. Godard não precisa colocar uma linha expondo didaticamente um comentário sobre a natureza humana, ao invés disso o cineasta francês prefere mostrar na prática — o famoso “show, don’t tell“, deixando o texto mais sutil a depender da condução da direção.
Não faltam exemplos no cinema de representações duras e que coloquem contra a parede as convenções sociais: Cisne Negro (2010) com reflexões sobre loucura e perfeição, Parasita (2019) e o conflito de classes, Neon Genesis Evangelion (1995) como uma autoficção de Hideaki Anno sobre a depressão — todos recorrendo às violências, mesmo as mais banais, para construir o argumento.
Modo geral, não há dúvidas, pela forma como a direção retrata o protagonista Shinji Ikari, de Evangelion, como alguém patético e frágil, que suas ações estão longe de serem glorificadas. As coisas ficam mais turvas conforme camadas de ironia vão sendo trabalhadas de determinadas formas, a contradição nem sempre fica evidente, seja pela cinematografia, pelos pré-conceitos pairando no imaginário, ou um conjunto de ambos, como o caso de Tropa de Elite (2007).
De antemão, os diretores não devem uma lição de moral ao público: não se trata de poder ou não fazer, ou do que o público deva ou não gostar. Quando, porém, pretende-se comunicar algo, pensar o que e como se diz é fundamental para quem diz e quem recebe uma mensagem — e a sociedade brasileira, tão banalizada pela brutalidade cotidiana e espetacularização de programas policialescos, abraçou a violência do longa sob símbolos positivos; dá para culpar?
Enfim Shingeki no Kyojin
Não é agora que Attack on Titan lida com críticas relacionadas a condução de seu argumento. De forma a sumarizar, essa seção irá focar no roteiro da série, enquanto as demais vão se voltar a falas do autor em entrevistas e mesmo referências suas ao imperialismo japonês.
Quem acompanhou a febre que foi o lançamento do anime mais aguardado do ano em 2013 vai lembrar de como aquele foi o ano dos titãs, indiscutivelmente. Atualmente #1 no MyAnimeList, a primeira temporada de Shingeki no Kyojin segue uma premissa simples no começo, mas cheia de mistérios nos quais o leitor se torna cúmplice dos nossos heróis.
Em decorrência do aparecimento de gigantes devoradores de homens, a humanidade construiu três grandes muralhas: Rose, Maria, Sina, nas quais se escondeu por centenas de anos. A aparição de um gigante colossal nas bordas de Maria muda os rumos de falsa paz, destruindo-a e forçando a evacuação para dentro de Sina, causando um grande massacre, uma crise de refugiados, de alimentos e pânico generalizado.
É nesse contexto que o protagonista Eren Yeager cresce. Após ver sua mãe ser morta por um titã durante a queda da muralha, o jovem rapaz decide se alistar no exército e se tornar um membro da Tropa de Exploração, tornando-se símbolo de esperança da humanidade na luta contra os titãs.
As coisas não saem como o esperado, e, apesar de se formar, Eren descobre que possui poderes de se transformar em titã com consciência. Seu poder é visto com grande desconfiança por parte da cúpula militar, que decide, com relutância, não o matar e usar seus poderes para reconquistar o terreno perdido.
Eren também possui memórias foscas sobre seu pai, o doutor Grisha Yeagar. Crendo ele ser peça chave por trás desse mistério, Eren precisa utilizar a chave que seu genitor lhe deu quando pequeno e acessar o porão de sua antiga casa, que possivelmente guarda os segredos da humanidade.
Eren não está só: ao lado de seus amigos de infância, a protetiva e apaixonada Mikasa Ackerman, bem como o idealista e estrategista Armin Arlert, eles devem deixar de ser crianças para proteger as coisas que mais estimam: a liberdade, o amor, seus amigos. Nesse caldeirão, a história também aborda temas como alienação político e religiosa, racismo, embate de classes, entre outros. Poético, não?
Boo, humanos são o verdadeiro monstro!
Tal como o já citado Neon Genesis Evangelion, Shingeki no Kyojin dá uma grande virada que muda em aparentes 180º os rumos da história e incorpora o be-a-bá de Frankenstein de Mary Shelley ao pé da letra: “Evangelion não se trata sobre briga de robôs gigantes, é sobre sentimentos humanos!”, “Shingeki não é sobre titãs maus, o verdadeiro inimigo sempre foi o homem!”.
Embora tanto mangá quanto anime transbordassem de dicas sobre o que estava por vir, a “virada” ocorre de fato no capítulo 91 do mangá (60 do anime): “O Outro Lado do Oceano”, quando o autor mais abertamente insere referências sobretudo à Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto. A polêmica, contudo, estava longe de ter nascido ali.
“Você é o verdadeiro inimigo”
Há um ponto de entrave fundamental para reduzir uma obra à analogia, e a discussão não cabe em um parágrafo. Algo citado com frequência é a oposição de dois importantes escritores da literatura fantástica: C.S. Lewis (d’As Crônicas de Nárnia) era um grande entusiasta e tenta abraçá-las construindo paralelos diretos entre sua criação e a Bíblia, já seu amigo pessoal, J. R. R. Tolkien (O Senhor dos Anéis, O Hobbit), era o perfeito oposto — e rejeitava quando tentavam estabelecer relações de sua obra com eventos do mundo real.
Por mais genial que Tolkien possa ser em sua construção de mundo, enquanto humano e dotado de capacidade linguística, seus escritos não estão descolados da realidade material. Nesse ponto entra o conceito de morte do autor: o que o autor realmente acha ou quis dizer pouco importa, mas sim o que é que está escrito (ou desenhado). Exemplo? J. K. Rowling (Harry Potter) diz que Dumbledore sempre foi gay, mas não há nenhuma indicação disso em nenhum dos sete livros originais.
Pode parecer estranho, e no fim é uma das formas de enxergar a questão (e não verdade absoluta), mas essa perspectiva também tem a oferecer de valioso que, no fim das contas, um autor tem poder limitado sobre sua obra: nem tudo que escreve e faz é consciente — quem já fez terapia sabe bem como a mente humana tem dessas.
Fugindo do assunto? Não, não. Traçar linhas diretas entre a história do mundo do que se tornou Shingeki no Kyojin é espinhoso, primeiro — e mais óbvio — que Eldia e Marley não são o mundo real (e os fatos de um não estão amarrados aos do outro), segundo que essas expectativas decorrentes podem ser frustrantes: seja por levar a conclusões exageradamente sombrias, quanto por não se fecharem enquanto argumentos (ponto um).
Feita essa concessão, não é um exagero dizer que há inspirações de eventos reais para Attack on Titan. Na história, Marleyanos contam que Eldianos são descendentes de uma rainha que fez pacto com o diabo, ganhando poderes terríveis, os quais foram usados para subjugar outros povos.
No presente, parte dos Eldianos vive escondida nas muralhas, enquanto a outra, a que permaneceu em Marley, vive em guetos e usam braçadeiras de identificação semelhantes às adotadas em campos de concentração nazistas, além de serem usados como armas de guerra. Nomes, arquitetura e até a música flertam com o universo alemão.
Seid ihr das Essen? Nein, wir sind der Jäger!
Fragmento da abertura 1, “Guren no Yumiya”, por Linked Horizon.
Representar, como vimos, não é sinônimo de criticar (ou valorizar). A grande mensagem de SnK, sem dúvidas, é o famoso ciclo do ódio — Eldia no passado fez coisas ruins, Marley também, e enquanto um continuar agredindo o outro a violência e ódio hão de se perpetuar — ao menos é essa a proposta da série.
Vamos recapitular: uma nação imperialista cometeu crimes de guerra no passado, perde suas ocupações históricas, renuncia à guerra. Essa é a descrição dos Eldianos em Paradis, mas não por acaso leitores acharam similaridades com a história do próprio Japão. Relações de Shingeki, e do autor, com homenagem ao passado bélico japonês serão foco da próxima seção.
Artigo 9. Aspirando sinceramente por uma paz internacional baseada em justiça e ordem, o povo japonês renuncia para sempre a guerra como seu direito soberano como nação e à ameaça ou ao uso da força como meios de resolver disputas internacionais.
Artigo 9 da Constituição do Japão. Tradução nossa.
De forma a alcançar o objetivo do parágrafo anterior, forças terrestres, marinhas, e aéreas, bem como outros potenciais bélicos, nunca serão mantidos. O direito do estado à beligerância não será reconhecido.
Sendo ou não casualidades, a trama desenlaça-se até um beco sem saída, conforme a narrativa apresenta: ou os Eldianos lutam (e exterminam o mundo, agressor), ou são exterminados (seja pela “eutanásia” de Zeke ou pela guerra). É matar ou ser morto, mas todos os caminhos levam ao genocídio.
Novamente: ao menos no plano intencional das coisas AoT poderia ser um tratado sobre a natureza do homem, mas o que o storytelling nos diz é que, ao evidenciar a violência como traço natural do ser humano — e em última instância uma radicalização do Darwinismo social — Shingeki naturaliza (e banaliza) guerra/genocídio, ou, recapitulando o Eren do último capítulo: das centenas e milhares de vezes que tentou mudar o futuro, o resultado era sempre o mesmo.
Na essência, a história pode querer contar os dois lados, e mostrar que esse desespero é razoável e fundado historicamente. Seja como for, ao que Isayama pode fazer um bom trabalho mostrando como as narrativas são diferentes — como Marleyanos associando a fundadora de Eldia com o Diabo — não há uma simetria nessa representação. Essa é a história dos Eldianos sob, majoritariamente, a perspectiva dos Eldianos.
Salvo recortes específicos, como quando Marley é apresentada, ou a abertura 6, acompanhamos AoT por uma perspectiva em específico. Não há naturalmente algo de errado em escolher um foco da narração, mas o autor não se limita a mera observação, como pretende enganar.
This is my last war […]
Fragmento da abertura 6, “Boku no sensou”, por Shinsei Kamattechan
Destruction and regeneration
You are the real enemy
Em “Boku no Sensou”, que pode ser interpretada como uma perspectiva moderadamente Marleyana — com o sofrimento do povo, guerreiros sendo mandados à morte inevitável e disciplinarmente marchando retorcidos em agonia — queremos destacar as antíteses fortes, próprias de propaganda de guerra.
“This is my last war” é tanto um aceno à morte iminente, quanto ao enquadramento da situação de guerra — e ódio ao outro — como meios temporários para alcançar a glória maior; possibilitada pela união, com mãos de ferro, contra um inimigo designado (eldianos, os judeus, a esquerda, etc.).
Todo o restante da narrativa, no entanto, apesar das contradições, faz o trabalho de representar Eren como uma figura patética, de se sentir pena, e que está fazendo o que faz contra a sua vontade. Ao mesmo tempo, constrói-se sua imagem como alguém poderoso, temível, e admirável.
Exemplo? A transição de um cabelo curto e domado para um longo e rebelde — mas bem apresentado — simboliza o seu aspecto aparentemente revolucionário (daí a criação de uma facção com seu nome), que porém joga a favor da manutenção da ordem vigente, aqui a perpetuação de uma raça. Eren é o herói trágico dessa ópera, e Isayama está pedindo de joelhos para você achá-lo incrível.
All I ever wanted to do was do right things
Fragmento da abertura 7, “The Rumbling”, por SiM
I never wanted to be the king, I swear
All I ever wanted to do was save your life
I never wanted to grab a knife, I swear
É, por fim, que Eren planejou aquilo desde o início. O rapaz tentou milhares de vezes buscar alternativas diferentes, sem saldos positivos. Sua onisciência e onipotência hão de ser palco para discussão dos fãs até o fim dos dias sobre suas escolhas mais irracionais serem ou não furo de roteiro. Mas e daí?
Há, portanto, dois grandes problemas: erigir Eren como o herói romântico e que tentou impedir o genocídio de seu povo através do genocídio do restante do planeta (incluindo animais, plantas e ecossistemas inteiros). O segundo é decorrente do primeiro: se Eldia foi bombardeada anos depois, isso poderia ter sido evitado se Eren tivesse matado mais gente, não é?
Com a palavra, o autor
Outra importante fonte utilizada para sustentar a argumentação em voga — dessa vez, fora da obra — são as palavras do próprio autor, Hajime Isayama, que anos antes já deu munição para críticas sobre a índole de Shingeki no Kyojin.
Pergunta: Ao contrário das guerras da história humana, vencedores e perdedores em um mangá são decididos pelo autor. Você consegue determinar quem está certo no fim da obra?
Entrevista do autor para a Bessatsu Shounen de Agosto de 2017, originalmente em inglês por @fuku-shuu e @suniuz.
Isayama: Até agora, o que eu desenhei é a perspectiva do Eren daqueles dentro das muralhas, mas quanto ao Arco de Marley, esses mesmo indivíduos aparecem como inimigos de Marley. Com isso, a situação evoluiu de uma forma que nem Marley nem os leitores sabem o que o outro lado está planejando. Até agora, esse papel de alguém imprevisível sempre foi dado aos titãs. Então, ao fazer isso, eu inverti o roteiro em quem é bom e quem é mau.
Em última análise, não acho que a série transmita um julgamento do que é “certo” ou “errado”. Por exemplo, quando li “Himeanole”, de Furuya Minoru, eu sabia que a sociedade consideraria o assassino em série da história alguém imperdoável dentro das normas sociais. Porém, quando levo em consideração a sua vida e contexto ainda me perguntava: “é mera coincidência que eu não nasci um assassino?”. Nós justificamos aquilo que não podemos realizar como uma “falha devido ao esforço”, e há algo de amargo nisso. Por outro lado, para um perpetrador, ter a mentalidade de que “não é porque me falta esforço que sou assim” é uma forma de consolo. Não podemos negar que sob certas circunstâncias os sentimentos das vítimas são muito importantes, mas, considerando a raiz do problema, ao invés de avaliar “o que é certo”… ser influenciado por vários outros trabalhos e filosofias, e ilustrar verdadeiramente meus sentimentos durante esses momentos — acho que é assim que o final de Shingeki vai se parecer.
Já apresentamos que as opiniões de um autor não possuem necessárias implicações sobre a obra, mas o comentário acima traz perspectivas interessantes para se pensar Attack on Titan em sua glória e queda.
Ao explorar a mútua agressão e ciclo de violência, Isayama adiciona camadas dentro de sua própria leitura de um novelesco de vingança. Mas isso não é O Conde de Montecristo; é a espetacularização do genocídio, e com direito a agradecimento (alô, Armin Arlert) ao fim.
Isayama já comentou se arrepender do final após a chuva de críticas, e como isso está entrelaçado a escolhas que fizera no passado para a obra (além de, claro, que o final foi apressado pelos editores da Bessatsu Magazine).
A verdade é que a situação do Eren se mistura com a minha de certo modo com o mangá. Quando eu comecei a série, estava preocupado que ela seria provavelmente cancelada. Era um trabalho que ninguém tinha ouvido falar. Mas eu já comecei a história com um final em mente. E a história acabou sendo lida e assistida por um número incrível de pessoas, e isso me levou a receber um poder imenso com o qual eu não estava bem confortável.
Seria bom se eu pudesse ter mudado o final. Escrever um mangá deveria ser libertador, e se eu estivesse completamente livre eu poderia mudar o final. Eu poderia tê-lo mudado e dizer que queria ir a uma direção diferente, mas o fato é que eu estava amarrado àquilo que concebi originalmente quanto jovem. E, portanto, mangá se tornou uma forma de arte restritiva para mim, similar a como os poderes tremendos que o Eren adquire acabam restringindo-o.
O autor para o The New York Times.
Hajime Isayama, ao que possa soar — e há de fato um fundo de verdade no que diz — não está aislado dessa armadilha que criou para si: em 2010, o autor elogiou em seu blog pessoal Akiyama Yoshifuru, um criminoso de guerra responsável pela invasão da Coreia, ao qual assumiu ter se inspirado para criar o personagem Dot Pyxis.
Esta não é uma polêmica exatamente recente, ou inédita no mundo dos mangás populares, até Boku no Hero já se viu no meio de controvérsia similar. A postura ocidental ao imperialista japonês é diferente da japonesa, sobretudo sem haver uma construção crítica coletiva sólida.
A conclusão que chegamos disso, se procuramos uma resposta ao título deste artigo é: sim, mas depende – pois o próprio autor deixa muitas coisas em aberto. Shingeki possui evidentes argumentos mal amarrados e subtextos que dialogam mal com nosso “zeitgeist” vocabular sobre guerra e genocídio, que, somados, não podem ser meras coincidências, mas a obra em si não está em um todo afetada pela questão – e você não é uma pessoa ruim por gostar de obras de vingança com subtexto fascista mal amarrado.
Isto não descarta que seja possível repensar esses temas de forma responsável e tomar outros aproveitamentos da obra — e certamente não dizemos respeito a criminosos que viram em Eren um exemplo moral. Shingeki ainda é um mangá/anime interessante e cheio de reviravoltas, mas que isso não seja licença para naturalizar o que temos de mais sombrio de nosso passado (e presente).
No dia seguinte encontrei outro campo destes armênios de Zeitun. Os mesmos sofrimentos e as mesmas narrativas de martírio. ‘Por que não nos matam logo de uma vez?’, perguntavam eles. ‘Há dias que estamos sem água para beber e nossos filhos estão chorando por água. De noite somos atacados pelos árabes, que nos roubam as roupas da cama e as roupas de uso que podemos juntar, levam as nossas raparigas à força e ultrajam as nossas mulheres. Quando algum de nós não pode andar, os gendarmes o golpeiam. Várias mulheres nossas atiraram-se das rochas para o Eufrates para salvarem a sua honra; algumas com as suas crianças ao colo.
Fragmento do depoimento de Fräulein Beatrice Rohner, missionária suíça, sobre os horrores do genocídio armênio. In: “Atrocidades turcas na Armênia”, de Lorde James Bryce.
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