Ela tem entre noventa e cem anos. Ninguém sabe ao certo. Muito menos ela. De um ano para o outro, a velhinha não lembrou mais de nada. Sua memória virou um líquido transparente como água puríssima, sem cheiro, cor ou gosto.
No início foi um desespero geral. Filhos, netos, bisnetos e agregados preocupados com o que poderia acontecer. “Mamãe pode se perder na rua”, dizia a filha. “Imagina se esquecer o fogão aceso”, alertava o neto. “Não quero nem pensar no que pode acontecer se vovó esquecer de fechar a porta”, estava preocupado também outro de seus parentes mais jovens.
A velhinha dos cabelos tingidos de acaju deu alguns fios brancos para seus descendentes até que todos acostumaram-se com a ideia: vovó tinha Alzheimer. Mesmo com remédios e médicos caros, sua memória regredia com o passar de cada dia.
Não recordava o nome de nenhuma das filhas e muito menos dos seus netos. Raramente lembrava-se do nome de seu cachorro e de vez em quando esquecia o próprio nome. Contudo, uma lembrança permanecia intacta em sua mente. Era a lembrança de seu primeiro namorado.
Vovó mal lembrava da última vez que almoçou, mas lembrava-se com detalhes daquele galante rapaz que a cortejava há mais de setenta anos. Como se não bastasse lembrar do jovem namorado, a pouca lucidez da vovó a fazia pensar que estava em 1940, no exato dia de seu primeiro encontro.
Por isso, todos os dias a velhinha banhava-se, colocava seu melhor vestido, passava seu mais vermelho batom nos lábios e punha-se a esperar o rapaz com aquele delicioso frio na barriga de quem se apaixona pela primeira vez. Ficava ali, esperando e esperando até esquecer o que estava fazendo ali – e isso queria dizer algo entre cinco e dez minutos.
Era bem pouco. Mas a loucura, a velhice e a doença permitia que ela vivesse os melhores dez minutos de sua vida todos os dias.
Caso tivesse boa memória, a velha lembraria que o rapaz por quem estava esperando era o homem com quem se casou e o mesmo que a abandonou anos depois. Mas para que serve a memória? O que é a memória se não uma louca que joga fora comida e guarda trapos coloridos? Talvez, ao final não sejamos um livro de memórias, uma história completa. Talvez sejamos apenas instantes.
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