Viva a diferença!
Ter trinta e poucos anos nos dias de hoje pode ser motivo de angústia para aqueles que ainda não atenderam às expectativas que nossa sociedade alimenta em relação a essa faixa etária: responsabilidade e realizações, tanto materiais quanto afetivas.
“Requisitos para ser una persona normal”, filme espanhol lançado em 2015 (disponível na Netflix com seu título original, mas legendado), retrata bem essa angústia através da personagem María de las Montañas, que lembra muito o estilo de Clarice Falcão e seu jeito um tanto “gauche” de ser. Quem dá vida à protagonista é Leticia Dolera, também roteirista e diretora do filme, seu primeiro longa.
Em uma entrevista de trabalho, após lançar de imediato um comentário que em nada contribui para sua imagem, descreve-se como uma “pessoa normal”. Quando lhe pedem para definir o que seria uma pessoa normal, lista sete requisitos para em seguida se dar conta de que não preenche nenhum deles.
Desempregada e despejada por não ter pago o aluguel, María vê como única saída voltar a morar com a mãe – com quem não se comunicava há anos – e sente-se frustrada e perdida. Ela, como tantos jovens adultos que certamente irão se identificar com a personagem, “achava que iria conquistar o mundo quando se formasse”. Letícia Dolera convence como a inadequada social, aquela que não se encaixa, ao representar seu papel com muita naturalidade. Nela, nada é forçado ou com intenção de ser engraçado.
Ao deixar seu currículo na IKEA, loja em que o irmão trabalha, conhece Borja (Manuel Burque, que engordou quinze quilos para o papel). Ao se encontrarem por acaso em uma livraria, acabam tornando-se amigos. Esse encontro, aliás, é um verdadeiro clichê de filme romântico: o clássico esbarrão com livros sendo derrubados – títulos que gostariam, inclusive, de manter em segredo. No entanto, já sentimos simpatia por esses dois desengonçados e queremos ver o que vai surgir daí. Prometem ajudar-se mutuamente a atingir seus objetivos: Borja quer perder peso e María quer cumprir os itens da lista.
Nessa empreitada, ela reencontra uma antiga colega de escola, Cristina Pi (Alexandra Jiménez) que parece levar uma vida perfeita e que lhe arruma um encontro às cegas. Alexandra faz um ótimo contraponto à personagem de María de las Montañas, por representar bem tudo o que parece ideal (bonita, elegante, encaixada socialmente) e tem uma comicidade minimalista, na medida perfeita para o filme.Quanto mais transita entre pessoas aparentemente felizes e bem sucedidas, mais inadequada María se sente, e é com Borja que fica realmente à vontade. Os dois passam a dividir momentos íntimos realmente peculiares, e não estamos falando de sexo.
Manuel Burque também encarna um personagem que seria facilmente descrito como “esquisito” e tem com Leticia Dolera uma ótima química. Enquanto os “normais” se esforçam para parecer “cool” em galerias de arte e degustações de bebidas sofisticadas, os “esquisitos”, quando se encontram, podem se divertir muito mais.O contraponto para Borja é Gustavo (Miki Esparbé): bonito, elegante, educado, mas que de tão perfeito não parece real. Apesar de aparentemente “fazer tudo certo” – ou justamente por isso – não é ele que queremos para nossa anti-heroína.
Imprescindível destacar o carisma de Jordi Llodrà, ator com Síndrome de Down que interpreta Álex, irmão de María. O contraste entre os dois personagens é interessante – Álex tem autonomia, trabalha, é gay assumido (diz que se descobriu gay aos sete anos de idade), tem uma vida social animada e embora preencha os requisitos da lista criada por María, deixa bem claro para a irmã que não tem interesse em ser uma “pessoa normal”. Álex é presidente de um fã clube da saga Crepúsculo e tem um grupo grande de amigos com deficiência. Mas fora do grupo, vemos que ele trabalha e interage muito bem com qualquer pessoa, inclusive saindo-se muito melhor que María nas relações interpessoais. Jordi Llodrà é, sem dúvida, uma presença marcante e divertida no filme.
Num plano secundário, temos Barbara (Silvia Munt), a mãe de María, viúva que não consegue se desligar do passado, do finado marido e das brigas que aconteciam entre eles. Embora a fotografia do filme seja predominantemente leve e colorida, os ambientes em que Barbara transita são em tons pesados e escuros. Mesmo não tendo uma participação tão em evidência quanto o resto do elenco, por questões de roteiro, Silvia nos comove ao atuar de forma simples e sincera, e é justamente entre mãe e filha que acontece uma das cenas mais tocantes do filme.
Uma quebra muito positiva no desenrolar do filme é a cena em que Barbara e suas amigas decidem, um tanto desajeitadamente, experimentar maconha e acabam falando de seus desejos secretos. Sim, existe vida após os 50, mesmo num filme sobre pessoas de 30.
Embora seja uma comédia romântica, “Requisitos para ser una persona normal” traz uma reflexão sobre o quanto mentimos para os outros e para nós mesmos a fim de parecermos “adequados” e “encaixados” e o quanto esse esforço pode gerar infelicidade. Douramos a pílula a respeito de nossas vidas, não admitimos fraquezas para manter uma imagem de sucesso e felicidade nas redes sociais e fora delas. Como já disse Caetano, “de perto ninguém é normal”. Ser autêntico e deixar a normalidade de lado, independentemente da distância em que se está sendo visto, talvez seja um caminho para uma vida mais verdadeira.
Neuza Rodrigues
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Que bom vê-la num novo “front”! Não assisti ao filme, mas gostei da crítica. Como meus 30 já ficaram algumas décadas lá atrás, asseguro-lhe que quanto mais nos aproximamos dos 60, 70, menos nos preocupamos em ser “normais”. Lembremos da Dra. Nise da Silveira: “Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura”. Parabéns pelo texto!
Obrigada pelo comentário! E viva Dra. Nise!