A era da reprodutibilidade técnica tem mesmo suas vantagens e a voz da cantora Elza Soares reaparece com a canção “Mulher do Fim do Mundo” para sublinhar a condição da personagem Joana (a excelente Vaneza Oliveira), da série “3%”. Joana é uma das concorrentes de uma disputa que define, aos 20 anos de idade, se a pessoa irá ficar no “lado de cá”, entre os 97% de miseráveis, ou irá para o lado dos privilegiados.
O problema logo fica claro e a intriga entre o primeiro escalão de examinadores é intercalada com as do Processo. Que é tão arbitrário quanto o do texto de mesmo nome, do Kafka. Essa seleção envolve vida e morte, e é conduzida por Ezequiel (o ótimo João Miguel e seu jeito Marlon Brando de não abrir a boca para falar) – profeta de um paraíso prometido. Para não esquecer a gravidade dos fatos, Ezequiel diariamente mergulha a cabeça em uma pia cheia de água e vai aos limites da apneia.
Pedro Aguilera é o criador do projeto desenvolvido desde 2009 (com uma versão no Youtube que merece ser assistida). A direção de arte de Valdy Lopes Junior e a direção de fotografia de Eduardo Piagge reúnem signos/sintomas de um capitalismo tardio bem brasileiro – máquinas sofisticadas precisam de pancadas para funcionar. E a própria série segue assim: a limpeza dos ambientes de testes não filtra a crueza das favelas; o fluxo da interpretação é limitado por esteticismos. Estranhezas que não se resolvem e, por isso mesmo, distanciam para aguçar a crítica sobre a distopia.
Talvez por essas estranhezas, não me cativou na estreia (25/11/2016), mas é a primeira produção da Netflix no Brasil, então quis privilegiá-la e insisti. O flashback é recurso dramático para aprofundar narrativa e funciona também como boa fuga da realidade cansativa das disputas, no futuro pós-apocalíptico de uma sociedade controlada e ferida por suas divisões. Como a nossa.
Os personagens são carismáticos mesmo quando alguns diálogos têm inconsistente romantismo – nem sempre convencem, mas estimulam a instabilidade do ponto de vista de um espectador já treinado por séries como “Lost” (2004-2010) e suas gincanas com o bom senso. Joana aperta ou não aperta o botão vermelho que determina a morte (sem dor) daquele que foi seu algoz? Novamente, a voz da Elza Soares vem destacar a força da personagem e intensifica os grandes acertos de “3%”.
Por Carmen Filgueiras
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