Eles podem estar com uma reputação turbulenta, mas estão longe de sumirem de nossas vidas
Herdeiros de uma longa tradição que se estende desde antes dos quadrinhos como conhecemos, os super-heróis alcançaram sua grande glória com a onipresença na internet, televisão, cinema, e quadrinhos. Diante de um momento em que seus produtos viraram sinônimo de saturação, será o fim de uma era? Esse é nosso apanhado sobre a evolução (e queda?) dos super-heróis.
Onipresentes
É com algum consenso que se costuma periodicizar o início da Era de Ouro dos quadrinhos com a publicação do primeiro “Superman“, em 1938, cujo impacto na cultura popular ajudou a estabelecer convenções de um gênero que não nasceu exatamente ali, mas criaria um nicho que dali se veria cada vez mais complexo e ramificado.
Histórias de super-heróis, puxando pela essência, são quase tão velhas quanto a própria escrita — é sério: o mais antigo registro literário que temos preservado, a “Épica de Gilgamesh“, um semideus arrogante embarca em uma jornada que o transforma em um líder justo, retornando ao seu povo.
Nos clássicos não faltam exemplos: “Aquiles” (Ilíada), “Odisseu” (Odisseia), “Enéas” (Eneida), — figuras demimíticas, mesmo que imperfeitas, mas inalcançáveis, de feitos impressionantes, e que apesar dos percalços, agem de forma heróica; possuem um bom coração.
Se há algo muito particular na nossa mente na forma de contar histórias, isso foi e ainda é indagação dos estudos semióticos e linguísticos, mas o fato é que até a década de 30 não existia no imaginário coletivo uma ideia tão fixada sobre histórias de super-herói — com poderes, roupas extravagantes características, arcos narrativos muito característicos — que deixaram as seções dos jornais para ganhar espaço em livretos próprios.
Super-herói, tão agarrado à bondade e valentia, também virou em alguma medida sinônimo dos mocinhos de uma trama, da luta do bem contra o mal, e heróis que impersonam os valores nacionalistas são propulsionados pela Segunda Guerra Mundial durante a Era de Ouro.
A mudança para a chamada era de prata, tradicionalmente marcada entre os anos 1956 e 1970, vêm com, entre outros elementos, uma mudança para narrativas à ficção científica — alguns explicando-o como fruto de ansiedades do pós-guerra — e uma expansão do storytelling que reimaginou os super-heróis da era anterior para novas histórias de origem, dando pano de manga para a hoje obsessão pelos multiversos.
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É no fim da década de 60, franja de transição para a Era de Bronze que estreia a série de sucesso “Batman” (1966–1968), estrelada por Adam West no papel do homem morcego. Esse não foi o único programa do gênero para as telinhas com excelente recepção; o fenômeno dos super-heróis rende ao não apelar apenas a garotos jovens, como era de se esperar, mas adultos e garotas.
Dos anos que se seguem até os dias de hoje, caracterizados por muita experimentação, entrada de abordagem sobre temas tabu, como abuso de substâncias tóxicas, violência sexual e de gênero, sexualidade, além do sucesso de títulos por autores independentes — fora dos círculos das gigantes Marvel e DC — o gênero atingiu outro patamar criativo com a onipresença na cultura popular.
Com filmes como “Batman Begins” (2005), o próprio cinema foi responsável por difundir a quebra, do até então lugar comum, de que super-heróis são histórias infantis — é, contudo, com as tramas voltadas para toda a família, marcadas sobretudo pelo Universo Cinematográfico Marvel, iniciado em 2008/2012, que essas histórias mais movimentaram o público, vide o feito de segunda maior bilheteria para “Vingadores: Ultimato” (2019), com 2.79 bilhões de dólares.
Mas depois do auge, vem a queda.
Crise
Em entrevista para o The Guardian em 2022, um dos mais importantes quadrinistas contemporâneos, Alan Moore, reiterou de forma ainda mais virulenta uma opinião que já defendia há muitos anos, a preocupação das narrativas de super-heróis infantilizarem audiências adultas, apelando para o desejo de tempos mais simples, uma fetichização do messianismo.
A crítica de Moore, catalizadora da opinião pública sobre o assunto, recebeu mais destaque com o crescendo do sentimento de saturação dos super-heróis. Se anteriormente a crítica especializada já não era particularmente gentil com os filmes — o que não infrequentemente se justificava com uma ojeriza, quase acadêmica, ao “popularesco” — a recepção da audiência após “Ultimato” mantém-se desanimada.
Essencialmente, Alan Moore ataca como essas narrativas apelam a uma fantasia coletiva de salvador, do individualismo frente à coletividade. Em última análise, do super-herói como símbolo supremo do status quo — e em um universo em que opositores são escritos para serem enquadrados como radicais loucos, e o sacrifício final em prol da humanidade vem do gênio, bilionário, filantropo Tony Stark.
“Eu disse por volta de 2011 que pensava que milhões de adultos fazendo fila para ver os filmes do Batman tinha sérias e preocupantes implicações para o futuro. Porque esse tipo de infantilização – o impulso rumo a tempos mais simples, realidades mais simples – é que pode ser tão comumente um precursor ao fascismo.”
Alan Moore para o The Guardian, tradução nossa.
Não parece que o público, de repente, tenha criado aversão a esse modelo de contar histórias, que, vale pontuar, não fabrica sozinho esses penamentos, mas reflete aspectos não visíveis do pensamento social. O esgotamento das narrativas de super-herói aparenta, no entanto, ter muito mais a ver com a decadência de um modelo, que já ocorreu anteriormente, reenforçado pelo desaquecimento da febre com o fim da fase 3 da Marvel.
Não estamos particularmente cansados de algo mais profundo nessas narrativas — que ligam “Hua Mulan”, e “Scheherazade” de “Mil e Uma noites”, a “Pantera Negra”. Narrativas com superpoderes, mesmo quando elementos retóricos, de modelo próximo ao americano, podem ser conectadas até mesmo com o clássico “Fantomas” (Ougon Batto), em 1931, e se hoje “My Hero Academia” é um dos principais sucessos de venda no Japão, há de se perguntar se existe algo além da fórmula popularizada por Hollywood que mantém a paixão nesses sonhos viva.
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Falar de super-heróis é falar de hegemonia cultural, de certos consensos que temos entre nós. Em um verdadeira indústria, a cultura, que privilegia a replicabilidade e aposta pouco em riscos, é as engrenagens do modelo pouco a pouco ficam mais visíveis e desgastadas; alcança-se um pico, uma curva em U, mas nenhum modelo é sustentável indefinidamente.
Ainda falando da cultura japonesa, o gênero isekai, sobre viagens para realidades alternativas, enfrentou um particular crescimento após a popularização de “Sword Art Online” (2012), porém mais recentemente autores tem sido criticados pelo uso abusivo de clichés do gênero na construção de suas obras, e mesmo exemplos sobre suposta subversão artística (como “Re:Zero” [2012]), vão igualmente, aos poucos, deixando de fazer sentido.
Não temos a resposta de como a indústria vai sair dessa crise, mas é impossível não trazer para mesa a adaptação das comics dos 2000 “The Boys”, recém estreiada sua quarta temporada, e com melhor recepção até o momento. Revelando o lado perverso de uma sociedade controlada e dependente de super-heróis, a série pela Prime Video apresenta uma antítese à histeria por essas figuras, o que pode sinalizar que, como outros gêneros (mecha, mahou shoujo, isekai, etc.), a experimentação dessas contraideias deve ficar mais frequente nos próximos anos.
Será que a crise de roteiristas e embate com exploração antiética de inteligência artificial na produção de conteúdo irá saturar ainda mais rápido o gênero? E como produções não-estadunidenses podem contribuir para trazer outras perspectivas aos super-heróis? Nos momentos de maior crise, vem a oportunidade para renascer.
Imagem Destacada: Divulgação/Prime Video e Crunchyroll
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