Por mais que uma parte da população, especificamente a extrema-direita, negue, a ditadura militar deixou uma profunda e incurável ferida no Brasil. Até o presente momento, não houve julgamento dos criminosos e suas devidas condenações, como ocorreu em outros países que enfrentaram o mesmo mal. Portanto, para que atrocidades desse tipo não se repitam e para que as vítimas não sejam esquecidas, obras como “Ainda Estou Aqui” são de grande relevância, especialmente porque o filme do experiente e premiado Walter Salles vem atraindo atenção internacional e pode, por que não, conquistar um Oscar no início do próximo ano. No entanto, é imprescindível ressaltar: o prêmio da academia estadunidense não seria um selo de qualidade para o filme, que de longe necessita disso; seria uma importante exposição dos fatos ocorridos no Brasil entre 1964 e 1985 para os muitos que ainda desconhecem essa história. Evidentemente, apenas a existência do filme, reunindo nomes relevantes, já é suficiente para gerar debate, mas talvez um prêmio de grande visibilidade midiática faça com que a discussão sobre a ditadura retorne com força ao seio da população brasileira, exercendo ainda mais pressão sobre aqueles que detêm o poder legislativo.

Para isso, “Ainda Estou Aqui” possui grande potencial, já que narra a história de uma família comum, como a de qualquer brasileiro de classe média. Os Paiva têm em sua base a mãe Eunice (Fernanda Torres) e o pai Rubens (Selton Mello com sua habitual doçura no olhar e na fala). Eles residem em uma casa à beira-mar no Rio de Janeiro, capturado pelas câmeras do diretor de fotografia Adrian Teijido de forma ensolarada e vibrante. Toda a alegria desses indivíduos, repleta de festas, praia e música, se dá à margem da ditadura (o filme se passa nos anos 70). Na primeira parte da narrativa, o perigo espreita, mas não perturba o cotidiano. No entanto, a partir do segundo ato, o pai é capturado por agentes do estado, e toda a estrutura de felicidade desmorona. As cores e a luz do sol se dissipam, dando lugar a uma casa fechada e repleta de sombras. Não há mais música, e os personagens passam a evitar conversas entre si.
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Salles e Teijido realizam essa transição de clima com maestria, evidenciando o apagamento das cores e o sufocante aspecto de prisão em um ambiente que antes estava aberto ao mundo. Até mesmo os atores são transformados. Se antes eram bronzeados e vestiam roupas que deixavam partes do corpo expostas, após o sequestro do pai, todos adquirem palidez e começam a usar trajes que os ocultam, especialmente as filhas Vera (Valentina Herszage), Nalu (Bárbara Luz) e Eliana (Luiza Kosovski). O resultado da repressão, portanto, é evidente. Nesse contexto, Eunice precisa cuidar dos filhos e da casa, o que dá espaço para que a atuação de Fernanda Torres brilhe com tanta intensidade que ela acaba por dominar o filme. O trabalho da atriz é notável, pois não necessita exagerar em seus gestos ou alterar o tom de voz para expressar o sofrimento de sua personagem; ela o faz apenas com olhares que transmitem angústia e desespero.
“Ainda Estou Aqui” também é um filme sem exageros, assim como sua protagonista. Walter Salles mencionou que subtraiu muitos elementos no corte final: mesmo os soldados da ditadura não são apresentados de maneira estereotipada, e ele fez questão de deixar claro, por meio de um personagem específico, que nem todos do exército apoiavam os atos brutais. A cena em que isso é exposto, inclusive, parece não funcionar plenamente, talvez devido à falta de habilidade do ator que acompanha Torres ou pela dificuldade de acreditar que aqueles que faziam parte das forças armadas não eram monstros assassinos. Por conta da falta de compreensão ou do puro preconceito da parte de quem vos escreve, isso precisava ser exposto.

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No que tange à direção do longa, vale destacar que Salles optou por uma abordagem voltada ao cinema acadêmico. Excetuando algumas cenas com câmera na mão, o filme segue um padrão clássico de execução. Por exemplo: na maior parte do tempo, os diálogos são em planos e contraplanos, e há pouca movimentação da câmera após o desaparecimento do pai. Isso, vale enfatizar, não é uma falha do filme, pois serve ao propósito do realizador de conceder atenção especial aos personagens, enquanto o formato permanece em segundo plano, sem interferir nas cenas.
Por todas essas razões, “Ainda Estou Aqui” é o grande filme brasileiro da temporada, e merece todos os elogios que vem recebendo ao redor do mundo. Principalmente porque Eunice, Rubens e Marcelo Paiva, o conhecido escritor, filho do casal e autor do livro que inspirou o filme, conseguiram vencer a máquina ditatorial que tentou fazer sua família desaparecer. Paradoxalmente, contudo, a fortaleceu ainda mais.
Obs.: No ato final do filme, algumas cenas com Fernanda Montenegro são fenomenais. Através delas, é possível afirmar que a filha teve uma excelente professora ao buscar atuar apenas com sentimentos, sem o uso das palavras.
Este Filme foi visto durante a 48ª Mostra de Cinema em São Paulo.
Imagem em Destaque: Divulgação/Sony Pictures Brasil

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