Na nossa segunda semana falando sobre clássicos da animação japonesa, escolhemos um caminho diferente. Onipresente na cultura pop, o responsável por aumentar o número de adaptações de light novel. Querido ou infame, uma das primeiras grandes febre de slice of life mundialmente. O clássico da semana não poderia ser outro: A Melancolia de Haruhi Suzumiya (orig. ‘Suzumiya Haruhi no Yuuutsu’).
De volta para 2006
A jovem Suzumiya Haruhi é uma estudante aparentemente normal e que está terrivelmente entediada. Para quebrar esse marasmo, ela pretende juntar seu próprio clubinho de estudo de atividades paranormais, arrastando o cético Kyon, a contragosto, a fazer parte dessas loucuras.
Apesar de crer que isso é tudo delírio juvenil, um típico caso de “chuunibyou”, Kyon logo é confrontado com a verdade. No seu desejo genuíno de se divertir e fazer amigos, Haruhi fabricou cada uma das atividades paranormais, incluindo forçar os protagonistas a repetir milhares de vezes o mês de agosto — porque não queria o fim das férias de verão.
O trágico melancólico da história é que Haruhi não possui consciência dos poderes que tem. Como deusa onipotente, mas nada onisciente, desse mundo, os protagonistas se veem tentando entreter a garota ao que correm o risco de, caso ela se entedie, destrua a realidade sem querer.
Não por acaso, esse anime, que é baseado em uma light novel ainda em publicação, é uma bagunça bem organizada: a série é conhecida por ter duas ordens de assistir, a ordem de exibição original, e a ordem cronológica. Dentro do universo isso é explicável pelos poderes de Suzumiya, que causam essa distorçam temporal — a primeira ordem é também chamada de “Ordem de Kyon”, por ser Kyon o narrador e também como ele (e o público) percebem a temporalidade, enquanto a segunda, cronológica, é a “Ordem de Suzumiya”.
Enquanto a ordem de exibição oferece uma cápsula do tempo entre as duas temporadas (2006 e 2009) e o filme (2010), a ordem cronológica é a preferível por amarrar e entender esse universo, de forma que o telespectador vai saltando de temporada em temporada para poder amarrar os fatos.
Eterno agosto
Se você conhece um pouco Suzumiya deve saber da existência polêmico “Eterno oito” (Endless Eight, uma piada com agosto, em japonês literalmente “mês oito”/hachigatsu), um dos arcos de animes mais odiados e divisores de opinião na comunidade otaku. Na história, Suzumiya realmente força (sem querer) que as férias durem para sempre, fazendo com que os protagonistas repitam 15.532 aquele verão.
A grande questão? Primeiro, os protagonistas têm suas memórias apagadas a cada reset, de forma que a única forma de romper o ciclo é o sentimento de déjá vu que ocorre de vez em nunca — repetindo os 16 dias do loop temos um total de 594 anos, dos quais os protagonistas descobriram o loop pelo menos 8.769 vezes.
Parece, e é, um conceito muito interessante de ser explorado, mas a equipe de produção foi um passo além e tornou também a audiência refém da maldição de Haruhi. Por oito episódios chamados “Endless Eight I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII” somos obrigados a ver o mesmo episódio de novo e de novo, com sutis alterações em cada um.
Uma execução genial e ousada para provocar na pele a união entre forma e conteúdo? Não foi o que o público achou em maioria na época. Suzumiya Haruhi, que foi um fenômeno estrondoso dentro e fora do Japão, recebeu uma onda de comentários negativos que até hoje mantém o anime em alguma zona de infâmia — e pudera!
Modo geral, é possível viver sem assistir o Endless Eight completo, sendo preferível assistir o primeiro, segundo e oitavo episódios para fechar o argumento em si. Essa grande piada da produção (pois na light novel isso não é levado tão a sério) pode ter custado caro, mas só fez aumentar a popularidade — ainda que por vias negativas — e tratou de imortalizar a obra de vez como um “evento canônico” da cultura pop japonesa: é impossível esquecer a voz da irmã de Kyon repetindo a mesma frase, não importa quantos anos tenham se passado.
Kyon-kun, denwa!
Kyon-kun, o telefone!
God knows
Suzumiya Haruhi não inventa a roda e muito menos o gênero slice-of life. É verdade que o status cult que ganhou ao longo dos anos tem a ver com a febre por Haruhi em 2006, e hoje a produção não é tão lembrada senão pelos fãs mais ferrenhos de anime, contudo, em retroflexo, Suzumiya tem os seus méritos.
Haruhi é um projeto ousado e que poderia ou não dar certo hoje em dia, mas transmitir oito episódios quase idênticos em rede nacional é um movimento no mínimo audaz, e na opinião de quem vos fala um grande comprometimento com a arte, ainda que o único entretenimento que saia disso seja mórbido, e parece improvável para uma geração cada vez mais imediatista.
Para além do Eterno Agosto, mesmo sem uma animação das mais primorosas, o roteiro consegue sintetizar o espírito de acolhimento e deslocamento dos personagens da obra. Ao fim de horas de Haruhi, você vira também um membro da SOS Brigade, um sentimento que poucas obras conseguem fazer com louvor, como é o caso de “Steins;Gate”.
Será que Haruhi tem algum nível de ciência de seus poderes? Qual vai ser a próxima loucura que ela vai aprontar? Por que temos uma criatura alienígena tomando forma humana? Os mistérios podem ser os mais absurdos, porém. abordados de forma leve, a audiência é posta em uma rotina da qual quer fazer parte, um grupo de amigos zero convencional, e levar-se à época de colegial.
Falando em colegial, além de sintetizar esse sentimento de nostalgia por algo que muitos ainda podiam nem ter vivido (a graduação, os últimos anos de colégio…) — pois muitos fãs eram crianças à época — Suzumiya Haruhi faz o excelente trabalho de capturar a energia de um anime de seu tempo, desde referências até piadas, o que não quer dizer que (re)assistir Haruhi nos dias de hoje tenha se tornado datado.
É difícil mensurar o que foi o fenômeno Haruhi, mas existe um antes e existe um depois de sua exibição. Para começar, adaptações de light novel eram raras, o que mudou em 180º desde então. De certa forma, dá para pensar que sem Haruhi seria difícil haver o fenômeno “Sword Art Online”, e por consequência a onda de isekai a partir da década de 2010. Além disso, o fator de reassistibilidade é outra jogada genial para um slice of life, criando um anime de conforto, cativando uma legião de fãs, e vendendo toneladas de merchandising — o meme que foi a Hare Hare Yukai Dance, e o que falar do super tema que é “God Knows” cantado pela seiyuu Aya Hirano?
Vale frisar que Suzumiya Haruhi está longe de ser perfeito, algumas partes não envelheceram tão bem como deveriam. Se você está na dúvida do que assistir na próxima vez que parar para sentar, ir de coração aberto para essa experiência dificilmente não será parte memorável de sua memória como espectador, mas tente convencer um amigo ou dois a embarcar nessa —parte da febre de Haruhi está na experiência compartilhada de discutir com seus amigos.
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