O ingrato intercâmbio entre idiomas tão distintos
“Tradutor, traidor!” essa expressão antiga que representa o conflito insuperável da tradução: o fato de que não há como abraçar todos os conceitos e nuances com perfeição na hora de adaptar para um outro idioma. Sendo o Japão uma grande potência da animação mundial, é conveniente pensar que, como não possui ancestral em comum com a língua portuguesa, conflitos de tradução ficam ainda mais latentes; sobretudo com a teatralidade do japonês de anime.
Escolhemos alguns conflitos chave, já palco de algumas polêmicas entre os fãs, e que ajudam não só ilustrar a questão mas entender melhor o universo da língua japonesa.
Eu AMO ou GOSTO de você?
O amor é mesmo uma coisa linda, mas apesar de milênios de discussões, desde Platão escrevendo fanfic sobre Aquiles e Patroclus, até os romances água com açúcar de Hollywood, não chegamos a um consenso de como ele opera. Isto é, as noções de relacionamento que temos hoje em dia são profundamente influenciadas por nosso contexto e herança europeia, o que não quer dizer que isso se aplica para realidades de outras sociedades, incluindo a japonesa.
Fato é que após a ocupação estadunidense no Japão o arquipélago passou por profundas mudanças sociais, abrindo-se de vez para o ocidente em um processo que se iniciara na Era Meiji (1867-1912), e em última análise através do primeiro contato com os portugueses, em 1543. Várias obras retratam as tensões decorrentes desse contato abrupto, como é o caso de Sakamichi no Apollon, com um protagonista a sofrer exclusão na década de 60, sendo filho de pai americano e mãe japonesa.
Bom, compreender que as circunstâncias que formaram nossos locais de pertencimento são diferentes é relativamente uma tarefa simples, não? Alguns subtextos podem ficar obscuros e demandam uma explicação cultural, como são os costumes envolvendo o natal, que não é tido como uma data cristã, e a entrega de chocolates, ambos aproveitados pelos japoneses como oportunidades de se entregar presentes a alguém especial, mesmo amigos.
Não seria surpresa, então, que a forma como os japoneses se comunicam seja diferente. Enquanto pareça a coisa mais natural para os ocidentais falarem de amor e fazerem juras enlouquecidas para a pessoa amada, com a Terra do Sol Nascente é possível observar que há um cuidado muito maior ao se dizer, mesmo considerar, os sentimentos por outra pessoa.
Tū mē amās, egō tē amō (…) / Você me ama, eu te amo (…)
Plauto (254–184 a.C.), Mostellaria
Não deve ser uma revelação chocante para a maioria, mas a forma como idealizamos nossos relacionamentos nos traz uma percepção pouco coerente com a realidade, além de termos estragado o significado dos vocábulos envolvendo o amor: isto é, diz-se com tanta facilidade que se ama um outro alguém que a própria palavra foi enfraquecida, e isso está longe de ser uma reclamação que ecoe apenas nos dias atuais.
A maneira mais comum de se dizer que ama alguém em japonês é pela expressão “anata no koto ga suki” (あなたのことが好き), que pode ser traduzida ao pé da letra como “Quanto a ti, você é gostável”, uma vez que “suki” é um adjetivo e não um verbo; ou ainda “anata no koto ga daisuki” (あなたのことが大好き), “Eu gosto muito de você”. É bem comum, entretanto, que se veja utilizando, por não nativos, palavras utilizando o kanji “ai” (愛), amor, para se referir ao sentimento como em “aishiteru” (愛してる), cuja tradução se aproxima muito de “eu te amo”, porém os japoneses dificilmente vão dizer isso para seu parceiro, mesmo após anos casados — soa como algo extremamente romanesco, super-passional e até literário.
Em 2019 a Netflix se envolveu em uma polêmica com o lançamento do anime Neon Genesis Evangelion, um dos maiores clássicos da animação mundial, na plataforma. Isto porque a tradução gerou controvérsia, tanto por não traduzir quadros importantes quanto por uma cena em específica, que soou para alguns como censura homoafetiva, pois deram preferência a leitura de “suki” como gostar, não amar, diferente de como optou a primeira tradução em inglês da série de Hideaki Anno.
O contexto: em uma cena entre dois personagens masculinos, Shinji e Kaworu, ambos dão as mãos após um banho juntos; a sequência de falas, ambíguas no original, foram traduzidas abaixo pela Woo, de forma a explicitar essa dificuldade de transpor a forma como os japoneses se declaram a um outro alguém.
“Você merece minha afeição”
“O que isso significa?”
“Significa que eu te amo/gosto de você.”
[…]
“Kaworu disse que amava/gostava… a/de mim.”
Neon Genesis Evangelion, Episódio 24 – O Último Mensageiro, tradução própria
Pronomes
Vamos lá, o que são pronomes? Pronomes (eu, tu, nós, me, te, lhe, se…) são uma classe de palavras que se referem a outros vocábulos, nomes (e expressões com valor de), sem ter que repetir, realizando o que se chama de “anáfora”. Logo: “Maria escreveu cansada” é correspondente a frase com o pronome “Ela escreveu cansada”.
Tá, mas e aí?
O japonês é um caso curioso por apresentar uma lista extensa dessas palavras. Há formas de se dizer “eu” para os mais variados gostos e, por consequência, cada uma delas possui uma implicação social, que as vezes é diferente de acordo com o dialeto reproduzido. O mais instigante é que essas nuances costumam se perder na tradução, embora sejam elementos sutis de desenvolvimento do personagem, como nos casos em que o indivíduo muda o pronome conforme a personalidade que deseja transmitir.
A maneira mais comum é pelo emprego de watashi, simples, formal e unissex. No entanto, homens utilizando esse pronome em contextos casuais podem passar uma nuance de deslocamento, hiper-formalismo e até feminilidade. Há a versão mais suave e feminina, utilizada somente por garotas, sobretudo mais jovens, o atashi.
Outros casos que valem ser citados incluem: boku (ares de bom garoto, jovialidade, infantil; meio masculino se usado por garotas), ore (extremamente masculino e rude, comum entre garotos jovens e homens adultos informalmente), omae (segunda pessoa, originalmente implicava em respeitoso mas se tornou muito rude por inversão do significado), temee/kisama (ainda menos educados que omae, soam um tanto artificiais se forem utilizados fora de contexto de anime/mangá).
O que tiramos disso é que essas simples palavrinhas fazem mágica na hora da construção de personagem, por exemplo: a franquia My Hero Academia conta a história de Midoriya Izuku e sua jornada para se tornar o maior herói de todos os tempos, entretanto, o título no original ressoa como uma frase dita por ele, “Boku no Hero Academia“, de maneira que logo em um primeiro contato com a série a audiência já se presume que o protagonista é um garoto jovem, de personalidade calma e talvez pouco assertivo, diferente de seu rival e nêmesis em certa medida, Bakugou, muito mais expansivo e que prefere utilizar a forma hiper-masculina “ore”.
Outro exemplo? Em Death Note, Light Yagami é um estudante modelo, que certo dia encontra um caderno com habilidades de matar quem tem seu nome nele escrito, decidindo se tornar o “Deus do novo mundo” e “limpar” o mundo de criminosos. Apesar de seu ego inflado ele continua usando, mesmo enquanto jovem adulto, o pronome boku, o que lhe confere essa aura de rapaz certinho e que ao fim e ao cabo, mesmo sendo um assassino em série, crê piamente que está fazendo o que é correto.
A canção tema da primeira abertura “The World“, também pode ser interpretada como sendo dita na voz de Light, através do uso do referido pronome. Seu adversário, o detetive L, é um homem recluso e misterioso, utilizando sempre estruturas formais, com o emprego de watashi, o que corrobora para desenhar sua personalidade como um alguém com pouca adequação social; novamente outra nuance perdida na tradução.
Itsuka boku ga misete ageru / Um dia eu te mostrarei
Hikari kagayaku sekai wo / Um mundo resplandecente em luz
Nightmare, The World, abertura 1 de Death Note, tradução própria
Levando para uma demonstração mais radical de cinismo, no anime “Code Geass“, Lelouch Lamperouge é um estudante de ensino médio que ganha o poder de controlar as pessoas, decidindo usar isso para livrar o Japão das garras do domínio do Império de Britannia. Ao passo que no dia a dia faz uso do pronome “ore” para tratar com seus colegas de escola, quando assumindo a secreta identidade de líder revolucionário ele emprega, com maior sobriedade, o pronome “watashi“, afinal, ele precisa comover a opinião popular com uma imagem de alguém seguro, bem intencionado, polido e capaz. A manutenção do uso de “ore” poderia reforçar a narrativa do alçar de um segundo ditador, não mais o imperador de Britannia, mas Lelouch.
Formalidade
Um dos pilares da língua japonesa que os não-falantes mais devem estar familiarizados é que os japoneses se importam muito com a formalidade e cortesia, desde a língua. São três formas de discurso polido: teineigo (丁寧語), sonkeigo (尊敬語) e kenjougo (謙譲語), das quais não abordaremos com detalhes, mas possuem diferentes graus de separação entre os interlocutores e demonstração de humildade, como o verbo “itadakimasu”, forma hiper-formal do verbo receber/comer.
Ao fim de nomes de pessoas costuma-se utilizar um honorífico, a depender da relação social que o indivíduo tem com o outro. Muito brevemente, pode-se dizer que se utiliza “-san” com pessoas do mesmo nível, “-sensei” com mestres, “-senpai”, com veteranos, “-chan” e “-kun” como tratamentos carinhosos e assim por consequência, ao passo que esses dois últimos as vezes são traduzidos como diminutivos.
Novamente em Boku no Hero Academia uma das escolhas de tradução para o apelido de Bakugou por Midoriya, “Kacchan” é “Kazinho”. Ainda há outras múltiplos honoríficos menos comuns, como “-tan”, variante ainda mais intensa de “-chan”, utilizada pelo protagonista Subaru de “Re:Zero” para se referir à candidata a rainha como Emilia-tan.
Parte da ritualística envolvendo conhecer alguém envolve chegar no estágio de chamá-la pelo primeiro nome, visto que a etiqueta social demanda por regra que se chame o outro pelo sobrenome. É recorrente, portanto, que os roteiros brinquem com os costumes e tirem sarro de personagens na tentativa de serem referidos assim por um interesse romântico, pois isso seria sinal de evolução na relação — o que em comédias quase nunca termina bem: sabe quando você tenta um vínculo de intimidade com alguém e essa pessoa lhe corta? A situação é parecida.
Esse traço tão trivial dificilmente é abraçado pela tradução, que tem que se empenhar na busca de outros artifícios para tentar reproduzir como é construída a relação no ambiente. Não é exagero afirmar que em um diálogo entre vários personagens é possível que haja considerável variação nas formas de se referir ao outro, mesmo em uma sala de aula.
Garotos antes de flores?
Explorando um dos elementos mais óbvios: expressões e características culturais dificilmente são transpostas com exatidão. Alguns animes, sobretudo os que buscam retratar e satirizar o cotidiano, entregam algumas referências completamente obscuras ao público fora da realidade japonesa.
Em “Lovely Complex” o casal de protagonistas é comparado com a dupla de comédia “All Hanshin Kyojin” pela diferença de altura, já “Lucky Star” bombardeia o telespectador com tiradas sobre a subcultura otaku, em passagens que, por mais estranhas que pareçam, poderiam ser, com a devida licença poética, igualadas a “Vou assistir ao programa da Eliana”.
O mangá de sucesso “Hana yori dango” (Meninos antes de flores), adaptado diversas vezes para dorama, brinca com um ditado popular japonês que diz “Melhor dango do que flores” — afinal, dango enche a barriga, receber flores não — ao entregar outra leitura aos kanjis “男子”, que representam um bolinho tradicional da culinária japonesa, como se eles significassem outra leitura: meninos.
Conclusão
Com esse artigo não se finda a discussão sobre esses elementos, até porque a problemática não seria tão grande se fosse assim, mas vale o convite para pensar que essas implicações em cada minúcia também são válidas ao português — e a linguística não deixa mentir: ao escolher uma palavra ou estrutura, está se deixando de lado todas as outras possibilidades.
Através de uma vírgula ou aspas aparentemente inocentes, há sempre todo um subtexto implicado, e você talvez não tenha valorizado isso hoje, mas por traz da tradução “dattebayo” como “tô certo“, há um trabalho grandioso sendo feito por detrás das cortinas.
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Que post interessante. É essa a dificuldade de aprender uma nova Língua, não é só aprender as palavras é saber como se expressar no idioma.