Sabemos que existe uma certa polêmica quando o assunto é comparar a obra literária com a sua adaptação para o cinema. Primeiro, porque têm aquelas pessoas que não admitem de maneira alguma esse tipo de abordagem. E têm aqueles que adoram, já que “ler o livro para quê, se eu posso ver o filme, não é mesmo?!” Sem contar o fato que certas adaptações seguem o mote apenas da inspiração, como foi o caso do “O Orfanato da Srta. Peregrine”, cujo filme a-ca-bou, com a trilogia (mudando até mesmo os personagens principais); ou, pode ser como “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, que fez o próprio Saramago chorar quando viu a perfeição da sua obra nas telonas.
Mas o que acontece, então, quando a Woo! Magazine resolve comparar uma das adaptações mais esperadas desse ano?! Será que deu fruto? Já fizemos a resenha e já escrevemos a crítica. Assistimos o filme e lemos o livro. Agora queremos ousar. Só faltou falar se a mistura deu liga (ou não!). “Assassinato do Expresso do Oriente” chega hoje aos cinemas, e nós resolvemos comparar a Literatura de Agatha Christie, com a sua mais recente releitura. Estaria Christie se revirando no caixão?
*Atenção, a partir daqui esse artigo poderá conter spoilers*
O começo: cena versus ambientação
No livro, estamos às cinco horas da manhã, no inverno rigoroso da Síria. Já no filme, nos encontramos no extremo calor do Muro das Lamentações em Jerusalém. A mudança de lugar, de fato não interfere muito na intenção que ambas as obras têm. Apresentar ao público/leitor o detetive M. Hercule Poirot.
O que muda também, é a ida de Poirot para a Inglaterra. No livro, ele segue de trem até Istambul, para enfim, tomar o Expresso do Oriente. No filme… navio. Como já mencionamos no parágrafo anterior, essa mudança de ambiente, não interfere no contexto que vem a seguir, que é o do próprio assassinato. Nesse primeiro momento, rege mesmo a regra da apresentação de alguns personagens.
Os personagens:
Porém, quando vamos analisar mais a fundo esses seres e seus perfis psicológicos, então, vemos de verdade uma mudança mais brusca no roteiro. O livro, deixa implícito (muito!) o tal do humor britânico. Poirot, que já é conhecido em outras obras da autora, como um homem extremamente metódico e cheio de manias, se apresenta exatamente assim no filme, mas isso fica quase imperceptível na literatura. E essa mudança de característica de detetive mais sério para outro mais descontraído, deixa para o livro o humor nas entrelinhas e para as telonas um humor mais pilhérico.
E os outros? Os suspeitos dessa história… será que sofreram mudanças ao sair do livro para o cinema? Sim… eles mudaram. Física e psicologicamente. E para deixar mais fácil o entendimento para os nossos leitores, vamos citá-los na ordem que aparecem no livro. E logo de cara – além de Poirot, óbvio – temos Mary Debenhan. Ela aparece de relance no primeiro capítulo. Como uma brisa que passa… que diz que está ali. Ela está no mesmo trem que irá para Istambul. No entanto, não somos apresentados formalmente à sua pessoa. No, filme, ao contrário, eles cortam para o diálogo entre a moça e médico já no navio.
E aí, nesse diálogo aparece de verdade a primeira mudança – desnecessária! –. Ao passo que no filme ela está falando com o médico, que também embarcará no Expresso do Oriente; no livro a tal conversa se dá com o Coronel Arbuthnot. E olha só a confusão que a adaptação fez: no filme, o coronel sai de cena. Ele não existe. O que existe é o médico, cujo nome e as características físicas são as mesmas do coronel. Por que trocar o personagem, então? Porque o médico também existe no livro e tem um papel importante na obra.
Sigamos…
O próximo da lista é M. Bouc; no filme o bon vivant, jovem e sagaz responsável pelo Expresso do Oriente. No livro, um senhor idoso. I-do-so!! Ok! A mudança de idade aqui não altera os acontecimentos. M. Bouc ainda é responsável pelo Expresso, bem como amigo de Poirot. E sua participação é quase a mesma nas duas obras. O que vale perguntar é, por que não deixar o velhinho?? Não ia mesmo fazer menor diferença.
MacQueen é apresentado na sequência. Jovem e alto, essas são as únicas características que não batem no livro e no filme. Mas até que o restante foi bem fiel.
Daí para frente, (no livro) temos apresentações gerais de todos os outros personagens. E a maneira como Christie fez isso sem que se tornasse cansativa para o leitor, foi colocá-los todos juntos no café da manhã. Tal cena também acontece na obra de Michael Green. Entretanto, o diretor faz apenas um “au passant”. E aqui ousamos no francês, para explicar que os personagens já haviam sido apresentados de maneira muito singular. Como nosso colunista Paulo Oliveira bem disse em sua crítica, “(…) é quando as cenas de flashback são apresentadas em p&b, numa referência quase gritante do cinema noir”.
Então, resumindo o que acontece a seguir; filme: 12 pessoas no café da manhã. Livro: 13. Cadê o 13º? Bom, como já falamos acima, o coronel ficou de fora da brincadeira.
Em uma mesa estavam três pessoas: Um italiano (no filme ele é latino, ainda que não nos seja passado sua real identidade), um inglês típico, e um americano (provavelmente cacheiro viajante). Só vemos suas alcunhas (no livro e no filme), depois que o assassinato acontece.
Em outra mesa: a princesa Natalia Dragomiroff. Ponto para o diretor Michael Green. Sem mudanças ou pormenores. A princesa foi muito bem retratada.
Além disso, conhecemos Mary Debenhan (já mencionada), a missionária Pilar Estravados, e a viúva Caroline Hubbard. E é com Caroline Hubbard que temos outra mudança – também sem a menor necessidade –. No livro ela é chata e inconveniente. Daquelas mulheres neuróticas e pessimistas que acham que se o mundo acabar a culpa é delas. Total teoria da conspiração. E o que vemos no cinema? Uma mulher cuja autoestima é a alma do negócio. Segura de si, e cheia de charme para cima dos homens. E porque não gostamos da mudança? Primeiro porque colocaram a Michelle Pfeiffer para fazer um papel mais do mesmo. Segundo porque as loucuras daquela mulher também são importantes para obra. Mas se deixaram passar, bem… a gente finge que não viu e segue adiante.
Ratchett… ora, ora… temos mais um acerto nessa adaptação. A cenas entre o gangster e Poirot foram fieis.
O conde e a condensa Rudolph Andrenyi e Elena Andrenyi também sofreram alteração. Apesar dele ser um sujeito bastante hostil no livro; no filme sua hostilidade gera um nível exacerbado de violência. E Elena, a sua vez, saiu de uma mulher submissa, escondida nas sombras e nas rebarbas do marido, para uma personagem sedutora e autônoma. Porém, a ordem dos fatores não alterou o resultado.
E por fim, o médico. Junto a Poirot e Bouc, o médico fazia parte da tríade investigativa. Com a mudança de personagem, houve automaticamente mudança no enredo. Algumas coisas ficaram no ar para quem leu o livro. Mas se você só vai ver o filme, então relaxa e aproveite. Não há nada com o que se preocupar.
As outras personas não mencionadas não tiveram câmbios que interferissem no contexto. O que faz com que pulemos para o nosso próximo tópico:
O que funcionou e o que não funcionou na adaptação:
No livro, o Expresso do Oriente apenas para em meio a nevasca. Mas para dar um ar mais dramático ao assassinato, Green tira o trem dos trilhos. E isso foi ótimo, na verdade. Trouxe às telas um movimento e um dinamismo que não aparecem em seu homônimo. Cenas mais abertas, explorando o cenário dentro e fora do trem, fizeram com que a obra tivesse mais movimento.
Porém, a quiçá cena mais importante de toda a história – a da revelação – não teve a carga dramática que tinha no livro. E esse era um ponto que podia ter sido mais explorado pelo diretor. Entendemos que fica impossível não mudar elementos nas adaptações. Mas o filme se ateve a coisas que não eram tão importantes, e acabou deixando passar o ápice da questão.
No final, apesar de tudo, o saldo foi positivo. Sim! Há muito que não víamos adaptações que funcionavam. E o “Assassinato no Expresso do Oriente” acabou nos levando para uma viagem incrível. Vejam o livro e leiam o filme. Façam seus paralelos e criem suas próprias teorias. Embarquem nesse mistério.
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