“Vamos lá, gentalha, vamos virar gente.”
Duas mulheres ocupam uma extensa mesa de jantar. Na cabeceira, senta-se a dona da casa; ao seu lado, Regina, candidata à vaga de babá. Mais que mera comodidade, as posições obedecem a uma hierarquia. Cozinhar, usar branco, ficar no “quartinho” e jamais falar com o marido: não obstante a proximidade física, as exigências criam distância simbólica. De repente, no entanto, um telefone toca. Momentaneamente, então, a dinâmica se inverte. A entrevistada, antes subserviente às condições da futura patroa, revela tudo aquilo por trás do falso conformismo. “Deixa eu só te falar uma coisa: vai tomar no teu cu. Não é em qualquer cu não, é no teu”, brada a protagonista de “Como É Cruel Viver Assim” (2018).
Se Regina (Débora Lamm) precisava de um trabalho para se sustentar, a ligação abre nova possibilidade. Depois de uma hesitação inicial, o casal Clívia (Fabiula Nascimento) e Vladimir (Marcelo Valle), dono do apartamento onde ela mora, aceita participar de um sequestro. A mulher, frustrada dona de lavanderia, e o homem, desempregado, enxergam no crime, afinal, oportunidade para mudar de vida. Ao grupo junta-se, ainda, Robson (Silvio Guindane), atrapalhado amigo de Vlad conhecido como “Primo”. Juntos, os quatro se preparam para o grande dia enquanto recebem orientações do experiente Flávio (Milhem Cortaz), ex-namorado de Clívia, e dos amedrontadores Luiz (Paulo Miklos) e “Velho” (Otávio Augusto).
Relegadas, enfim, à marginalidade, as personagens se rebelam. Nesse sentido, uma imagem repete-se ao longo do roteiro de Fernando Ceylão (“É Fada”). Logo antes da cartela de título, uma mulher sem um braço vagueia pelas ruas vendendo bolo. Mesmo que não falte o membro a Regina, Clívia, Vladimir ou Primo, há, em comum, uma sensação de desajuste, uma falta simbólica. Condenados à crueldade de viver assim, apenas a morte os aproxima de Ronaldo, vítima do sequestro. Antes disso, não são “porra nenhuma”, como resume Vlad.
Sustentáculo do filme de Julia Rezende (“Meu Passado Me Condena – O Filme”), o núcleo central reúne as melhores atuações. A malandragem traduzida por uma desbocada Lamm (“Chocante – O Filme”) contrasta-se, por exemplo, com a ingenuidade da figura de Nascimento (“S.O.S. – Mulheres ao Mar”). O mimado adulto vivido por Guindane (“Metanoia”), por sua vez, estabelece divertida interação com a insegura personagem de Valle (“Meu Passado Me Condena – O Filme”). Entre os bons momentos da dupla, a insistência para visitar o local de morte do ex-jogador Dener rende curiosas consequências.
Para além da natural comédia, Rezende logra sucesso nos momentos de apreensão. Em parceria com a montadora Maria Rezende (“Em Nome da Lei”) e com o compositor Berna Ceppas (“Tim Maia”), a cineasta dita a dinâmica necessária à narrativa. Desde a apresentação, dividida em dois espaços – a lavanderia, onde Regina e Clívia conversam sobre o sequestro, e um escritório, onde Vlad tenta emprego -, o longa-metragem prende o público entre risos e suspenses.
Apesar do tom jocoso, porém, “Como É Cruel Viver Assim” não conforta o espectador. Caricaturas de um Brasil desigual, protagonizam o longa-metragem figuras amputadas, incapazes de superar a própria condição. Impossibilitadas de “virar gente” por meio de subempregos, essa “gentalha” – como chamada por Regina – tampouco se ajusta à vida criminosa. Resta, por fim, apenas um andar cambaleante, ansioso pela igualdade da morte.
* Após estrear no Festival do Rio 2017, o filme entra em circuito comercial no próximo dia 16, quinta-feira.
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