O musical “A cor púrpura” é um dos maiores acontecimentos do ano. O ímpeto de aplaudir a todo momento só é controlado pela constante necessidade de apreciar cada instante da peça. Não se trata apenas de uma beleza visual que enche os olhos, mas do domínio do elenco, cenografia, direção, sonoplastia e toda a equipe em articular essa beleza dentro de um roteiro e de músicas que arrepiam os pelos de quem está ouvindo.
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Baseada em um romance de estrutura epistolar, escrito por Alice Walker, a adaptação para dramaturgia de Marsha Norman consegue traduzir a linguagem literária para a teatral exemplarmente. Ainda que exista sempre um discurso de que obras literárias têm status privilegiado se comparadas a suas adaptações em filmes ou ainda de peças, ouso dizer que a versão brasileira de “A cor púrpura” nada perde nos diversos sentidos de tradução.
A peça foi apresentada no Teatro Villa Lobos, sob a direção de Tadeu Aguiar e texto traduzido e adaptado por Artur Xexéo. A direção de Tadeu, junto com o trabalho dos artistas e profissionais foi tão intensa, que os 165 minutos da peça passaram num piscar de olhos, e quando terminou, já senti vontade de ver de novo. É uma peça que você sente, vibra, estabelece uma conexão de irmandade com aquilo que está sendo observado. Nesse sentido, “A cor púrpura” é impecável.
A história nos transporta para a vida de Celie (Amanda Vicente), uma jovem de 14 anos que enfrenta um destino marcado pela violência e opressão. A personagem é vítima de abuso sexual por parte do próprio pai, o que resulta em duas gravidezes indesejadas, em que após as crianças nascerem são levadas para longe dela, sem que ela saiba o que aconteceu. Esse caso já seria dramático por si só, mas ainda conhecemos sua irmã, Nettie (Lola Borges), com quem possui um forte vínculo que é rompido após o casamento forçado de Celie com o Mister (Wladimir Pinheiro), passando a viver aprisionada em um relacionamento opressivo.
A história se passa no começo do século XX no sul dos Estados Unidos, onde o contexto do racismo e do patriarcado atravessam a vivência da personagem. Ao longo da trama, observamos outras injustiças sofridas por ela em virtude de sua cor. Embora o contexto da peça pareça apresentar um drama, a história traz à cena o apoio e cumplicidade que Celie encontra com a enigmática cantora Shug Avery (Flavia Santana) e a corajosa Sofia (Erika Affonso), personagens que ensinam a protagonista a lutar por sua voz e liberdade.
Uma das coisas mais bonitas que a peça consegue transmitir é a autodescoberta enquanto mulher, negra e não-heterossexual de Celie ao mesmo tempo em que emancipa a personagem da condição opressiva já mencionada. É uma narrativa de empoderamento pessoal, ainda que recorra à integração de Celie na sociedade capitalista, na forma de herdeira e de um pequeno empreendimento têxtil, para se traduzir um aspecto disso.
O elenco com uma expressiva presença de atores e atrizes negros está impecável. Isso ocorre porque esse é o ambiente da narrativa, mas ainda assim, não deixa de ser menos representativo. As atuações e danças são vívidas e as vozes são vibrantes, guiadas pela direção musical de Thalyson Rodrigues e coreografia de Gisele Batalha e Olívia Vivone.
Natalia Lana, já conhecida por assinar o cenário de “Bibi Ferreira – uma vida em musical”, “Dom Quixote” e ser indicada ao 16º Prêmio APTR De Teatro, projetou também, no palco italiano do Teatro Villa Lobos, um modelo giratório com 6 metros de diâmetro e uma escada curva com sistema de traveling em volta do cenário. Nesse sentido, ainda que fixo, diversos ambientes são criados.
A peça é dividida em dois atos. O primeiro ato introduz a premissa e todos os personagens, junto com os acontecimentos que mencionamos acima, e finaliza com a descoberta de Celie de que sua irmã está viva e que escreve para ela constantemente, mas as cartas eram escondidas por Mister. Essa descoberta ganha um belíssimo contorno estético ao finalizar o primeiro ato com diversas cartas caindo do céu.
O segundo ato, tal como o primeiro, é encantador. Nele ocorre a finalização do arco de todos os personagens que foram apresentados, o que indica a esfericidade de cada um na peça, e uma atenção do roteiro de não introduzir personagens planos. Mister, por exemplo, se arrepende de suas atitudes para com Celie e pede o seu perdão.
Nettie, que descobriu que os filhos de Celie não estavam mortos, retorna com eles ao final da peça, o que finaliza o arco da protagonista com a irmã, os filhos, financeiramente estável e agora empoderada e feliz.
A força de “A cor púrpura” reside na sensibilidade que conduz o seu público por uma jornada afetiva na exploração de temas como o machismo, o racismo, o patriarcado e a busca por autonomia nesse meio. Por fim, a peça é envolvente e convida o público a questionar essas estruturas sociais e a valorizar a igualdade e a solidariedade, junto com músicas e atuações marcantes.
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