O grupo Teatro da Vertigem desbrava corajosamente a cultura do agronegócio em sua recente montagem, “Agropeça”, utilizando como base o universo do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, com direção de Antonio Araújo e co-direção de Eliana Monteiro. A partir de um tom contestador, diversas questões contemporâneas são levadas ao palco, sobretudo aquelas que envolvem a cultura rural, permeando suas implicações e as trazendo para debate, assim como as relações humanas com a natureza e as transformações do mundo do campo. Os personagens do Sítio, berço comum do imaginário brasileiro, são deslocados do campo afetivo e adentram o campo político. Desse modo, a montagem se propõe audaciosa ao articular a fantasia lobatiana com a complexidade da cultura agrícola.
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A cenografia da peça, assinada por Eliana Monteiro e William Zarella Junior, ambienta o público em um rodeio. O chão de terra, a cerca de madeira envelhecida e os fenos espalhados contribuem na criação dessa atmosfera. Antes da peça começar propriamente, o público já está inserido no que ela propõe, e quando vai embora, os calçados ficam sujos de terra, afinal, não há como sair limpo do grande rodeio que é o Brasil.
O grupo foi muito feliz ao utilizar um teatro de semi-arena, uma escolha arriscada para quem não conhece a técnica. Essa estrutura desloca o palco para o centro da sala, enquanto os espectadores ficam distribuídos em três lados. Essa disposição foi de encontro a proposta estética da peça, pois simula uma arena de rodeio, o que torna mais imersiva a experiência teatral do público. Ainda, o uso de monitores no ponto alto do teatro apontados para os quatro cantos, favorecia que o público tivesse uma visão global dos acontecimentos do palco, independente de onde estivesse sentado. Arrisco elogiar que esse recurso era apenas um bônus, tendo em vista o excelente uso do espaço cênico que os atores fizeram.
Além dessa função, os monitores também serviam como meio televisivo para as propagandas, sempre parodiando a cultura televisa do agronegócio (com comerciais de cerveja, por exemplo), além de indicar a tradução das falas em inglês do Visconde de Sabugosa, excelente sacada para um público que não fale a língua.
No geral, a cenografia da peça é um grande acerto por sua precisão e estabelece uma conexão significativa com a proposta artística. Como dito anteriormente, o rodeio é o Brasil.
Quando se trata de personagens que fazem parte da memória coletiva e afetiva brasileira, como é o caso das do Sítio do Pica-Pau Amarelo, a transposição delas para o palco já estabelece uma relação de familiaridade para o público. Entretanto, o que o grupo nos apresenta é a maturação desses personagens. A experimentação de cada ator/atriz/atroz com seus respectivos papéis apenas ressalta a qualidade exemplar do trabalho do grupo em transmitir as nuances e complexidades da obra literária.
Pensar o Sítio a partir da ideia de terras de monocultura, herança, cultura rural que cruza as músicas sertanejas raiz e a universitária, de rodeios, da volubilidade da manipulação da fé em prol do agronegócio, é um choque que nos obriga a transformar nossas memórias desse universo. Nesse sentido, as atuações são colossais, pois partem da essência dos personagens e os reconfiguram de maneira coerente no mundo do agronegócio.
A boneca Emília, vivida por Tenca Silva, possui como traço ser irreverente, crítica e ter um gênio forte. Entretanto, isso não anula seu status de objetificação, de algo a se brincar, de ter sido fabricada, isto é, ter uma construção socio-discursiva que define quem ela deve ser. Dessa forma, o roteiro a utilizou como representação simbólica da experiência de pessoas transexuais, o que se tornou latente em seu monólogo.
A dona Benta, performada por Andreas Mendes, é dona do Sítio, isto é, proprietária das terras que passarão por herança a seus netos, Pedrinho e Narizinho. Ela é a representação da elite branca do agronegócio do país, que mantém em seu lar, em condições análogas a escravidão, a personagem Tia Anastácia, e que, quando vê sua posição econômica ameaçada, se apropria de discursos sociais para ser beneficiada. Além de, claro, ter um flerte com a extrema-direita.
O personagem Pedrinho, encenado por Vinicius Meloni, é o primo de Narizinho que morava na cidade e passava as férias da infância no Sítio. Na proposta da peça, seus traços são o de um agroboy, pelo interesse por atividades agrícolas quando criança, o que na idade adulta se converteu em monetização e uso do espaço como área produtiva.
Por sua vez, a Narizinho de Lucienne Guedes, embora ainda ecoe aquela personagem bondosa e gentil, denuncia a condição da mulher na sociedade atual. A falta de amparo que pode ser familiar, jurídica e social, assim como o pouco poder que ela possui em um meio domado pelo mundo masculino, está presente em cada entrada no palco e fagulha de sua atuação.
A tia Anastácia, encarnada por Mawusi Tulani, representa a “cozinheira de mão cheia” lobatiana, ex-escravizada, que no palco exige uma reparação histórica, e nisso a atuação afrontosa é ímpar. Suas falas são potentes, assim como seu figurino, que ressaltam a ancestralidade e a importância da mulher negra como impulsionadora possível de confronto à estrutura já consolidada no país.
Entretanto, o roteiro constrói essa personagem, em dado momento da peça, com um ar de antagonista de Monteiro Lobato, criador do universo que o grupo se apropriou para desenvolver o trabalho. O autor aparece brevemente, mas sua inserção e desenvolvimento no roteiro não chegaram à altura do que se propunham, isto é, um confronto entre um possível novo, representado por Anastácia, e um velho projeto de Brasil, o dele, o que pareceu não funcionar tão bem.
Outras cenas, como por exemplo a do ex-presidente João Figueiredo, almejam ampliar a temática principal, mas por não serem aprofundadas, acabam ficando dispersas no roteiro. Evidentemente, não há como abordar os diversos assuntos que envolvem o agronegócio de uma maneira tão profunda e talvez seja esse desejo que atrapalhou as cenas finais da peça.
Ainda assim, o roteiro, com texto de Marcelino Freire e dramaturgismo de Bruna Menezes e seu assistente João Crepschi, possui muitos acertos. Nas palavras de Bruna, “Os estudos que foram realizados tinham como objetivo aprofundar um projeto de nação que encontra no agronegócio uma força cultural e popular para atuar”. Nesse sentido, somos seguros ao afirmar que a o roteiro e a temática determinam cada elemento da construção do espetáculo com uma qualidade que demonstra o domínio da arte teatral que o grupo possui.
As performances dos atores, seus monólogos, bem como a interação entre os personagens, conferem ao texto a fluidez de um tecido com partes distintas, mas que quando unidas, aguçam os sentidos.
A peça, embora seja longa, 120 minutos, possui um tempo necessário para a história que quer contar, sem excessos ou faltas. É uma peça muito boa e não há como sair incólume após o contato com toda a qualidade do que foi escrito e encenado. Se Marcelino Freire diz que temos “Um país todo, em nossas mãos, sedento para se reconstruir”, a peça do Teatro da Vertigem nos mostra uma das maneiras de iniciarmos essa reconstrução.
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