Série baseada no livro de Neil Gaiman acerta ao ir fundo na relação
entre humano e o divino
Como escreveu o jornalista Brian Tallerico em um artigo recente da revista Rolling Stone, parece que estamos na Era de Ouro da televisão bizarra. Se há 25 anos, programas como “Twin Peaks” e “Arquivo X” eram exceções, hoje a televisão americana é um verdadeiro reduto de demônios, mutantes, criaturas grotescas e deuses. O público não teme mais o que existe “além da imaginação”.
É fundamental pensar nisso quando discutimos “American Gods”. Lançado há mais de quinze anos atrás, o livro de mesmo nome escrito Neil Gaiman não é uma obra necessariamente fácil de se adaptar. Em outros tempos, com outra equipe, o resultado e/ou a reação do público talvez fossem extremamente decepcionantes. Depois de ser abandonado pela HBO, o projeto foi acolhido pelo canal Starz e acabou no colo na dupla Michael Green e Bryan Fuller. Ambos possuem no currículo adaptações bem-sucedidas da literatura e do cinema para a TV. Green é o responsável pela elogiada “Fargo”; e Fuller nos fez temer Hannibal Lecter mais uma vez com “Hannibal”.
A combinação do contexto certo, com a equipe certa, permitiu que“American Gods” seja o que vimos nas últimas oito semanas. E o resultado não só agradou como também superou nossas expectativas. Em seus primeiros oito episódios, a série introduziu o público e seu protagonista Shadow Moon (Ricky Whittle) no universo de divindades que formam os EUA de hoje.
Recém-saído da prisão, viúvo e sem expectativas, Shadow aceita virar guarda-costas do curioso Mr. Wednesday (Ian McShane), sem suspeitar que vai se envolver numa guerra entre antigos e novos deuses. Já fomos conquistados na abertura, com seu totem formado por luz neon e referências culturais e religiosas das mais variadas. Ame ou odeie Bryan Fuller, é inegável o apreço e consistência estética de suas produções. O tom lisérgico foi capaz de transformar os mais ordinários dos cenários e locações em ambientes únicos, que parecem de outro mundo. A atmosfera perdurou durante toda essa primeira temporada, e foi fundamental para manter o espectador inserido na história.
Outro destaque foi a composição dos personagens e a escolha do elenco. Ian McShane roubou a cena desde o início como Mr. Wednesday, nos cativando ao mesmo tempo que não nos deixava esquecer, em momento algum, que suas intenções eram extremamente pessoais – e até egoístas. No mesmo nível, esteve Orlando Jones como Anansi. Embora com um tempo de tela bem menor que o do primeiro, Jones teve uma performance de alto nível, e merecia ter aparecido muito mais.
De resto, é preciso citar as maravilhosas encenações de Gillian Anderson na pele da deusa Media, passando por David Bowie a Marlyn Monroe, e a dupla Anúbis e Ibis (Chris Obi e Demore Barnes, respectivamente). Mesmo personagens mais banais, como o próprio Shadow e o vendedor/taxista Salim (Omid Abtahi), foram trabalhados por seus intérpretes. Emily Browning, embora limitada, melhorou com o passar dos episódios e trouxe uma Laura muitas vezes detestável, mas extremamente humana e relacionável.
Podemos dizer que a primeira temporada de “American Gods” teve muitos méritos: o de uma produção de alto nível, com direção de arte, roteiro, trilha sonora e elenco afinados; o de quebrar paradigmas, ao trazer um protagonista e muitos personagens não brancos, além de uma representação feminina e de diversidade sexual que fugiram dos clichês tradicionais (a cena de Salim e o Jinn, por exemplo, ganhou merecidamente um lugar de honra no coração do público).
Sem desmerecer os aspectos acima – tão fundamentais, ainda tão ignorados pelo showbiz-, “American Gods” teve o mérito de ser uma série sobre deuses e humanos. Parece óbvio, mas não é. Mesmo que Shadow não seja o personagem mais relacionável que existe, mesmo que sua jornada não empolgue, as narrativas que formam o programa empolgam, sem usar seus personagens e situações foram do comum como muletas.
A genialidade da série está justamente no modo que criou um mosaico de narrativas, destrinchando a relação do homem com o divino em todas as suas sutilezas. De Joseph Campbell, a Aristóteles, Nietszche, Freud e Jung, Fuller e Green criaram um produto sensível e incrivelmente universal, apesar de todas as suas especificidades.
Quer acreditemos neles ou não, os deuses americanos são mais reais do que nunca.
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