A palavra “Encantamento” é a que define cada momento da peça O torto andar do outro, que esteve em cartaz no SESC Avenida Paulista no final de semana do feriado de Tiradentes. A peça, baseada no cordel “Um conto bem contado” do autor mossoroense Antônio Francisco, teve o roteiro de Romero Oliveira, que pouco modificou do texto original. Logo, o público que assistiu à peça, nada perdeu do texto e muito usufruiu do primoroso trabalho teatral que a Companhia Pão Doce levou a ele.
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O cordel é uma forma popular típica da tradição literária e oral nordestina, cuja matéria são as histórias do cotidiano e as lendas populares. Quando unimos ele ao teatro, arte que aviva essa matéria e a expande para o público, de pronto lembramos as peças clássicas de Ariano Suassuna, como A farsa da boa preguiça, O casamento suspeitoso e O Auto da Compadecida, que ilustram essa articulação tanto no uso temático do corriqueiro e cômico quanto em relação a caracterização colorida de cenário e figurino. Entretanto, ouso dizer que a Companhia Pão Doce conseguiu dar um passo a mais e reconfigurar aquilo que a gente entendia por teatro nordestino.
O enredo da peça nos conta que havia uma cidade encantada no sertão, onde vivia um povo desajustado que andava de lado como caranguejos, quando a notícia de uma criança andando de trás para frente se espalhou e provocou um alvoroço nas instituições do poder. A partir daí, o público acompanha os desdobramentos da busca do Estado por essa criança. O roteiro articula o mito do nascimento de Jesus com a discussão da repressão do “outro”, o que atinge seu auge em um monólogo que encaminha a peça para o seu final. Em linhas gerais, a reflexão que a peça propõe ao público é: Até onde iríamos para eliminar o “diferente” e o quão somos coniventes quando isso acontece?
O prefeito tirano, o capelão hipócrita, dona Maria e outros personagens foram vividos pelos atores Ligia Kiss, Mônica Danuta, Raull Davyson e Diogo Rocha, que demonstraram imensa versatilidade na atuação em mais de um papel da peça, dando vida aos personagens de forma intensa e convincente. Embora cada ator tenha seus méritos e elogios, a atuação de Ligia Kiss extrapola aquilo que se espera de uma atuação exemplar, tendo o potencial de roubar a cena com sua habilidade de oscilar entre o cômico e o desesperador com suas expressões faciais e voz. Em dado momento de sua atuação, me sensibilizei a ponto de quase chorar, assim como no monólogo-protesto de Mônica Danuta nos instantes finais da peça.
Além disso, as músicas, também presentes no teatro popular nordestino, dirigidas por Romero Oliveira, que também assinou o roteiro, complementam a narrativa e trazem um elemento extra de entretenimento e beleza estética. Esse elemento do trabalho merece destaque, porque as canções originais são incríveis e não emergem na peça como adorno vazio, algo presente mesmo em musicais renomados, mas são alocadas em momentos específicos do roteiro onde apenas a palavra falada não seria o suficiente para externalizar as emoções que determinadas cenas suscitam.
Entretanto, é válido ressaltar que algumas falas são abafadas pela música, e embora isso não prejudique por completo a compreensão do espetáculo, tal acontecimento poderia ser evitado caso houvesse uma estrutura que comportasse melhor a acústica da peça. A vantagem é podermos ouvir as músicas, que foram disponibilizadas pelo grupo, com melhor qualidade no YouTube.
Um outro elemento importante é o cenário, que é bonito, atraente, e embora a história se passe em “Uma cidade encantada / Numa cuia pendurada / Num galho de jatobá”, conforme os versos do cordel já mencionado, a delimitação do espaço prejudica a movimentação dos atores, que já que devem andar de lado como caranguejo anda, algo mencionado e um dos mecanismos de conflito do enredo, tal ato pouco se viu, o que desarmoniza com a história. Ainda assim, o trabalho de iluminação está fantástico, colorido, vibrante e suave, cujas cores ambientam bem as emoções dos personagens e dialogam com o público em cada instante da apresentação. É um deleite aos olhos e tecnicamente superior às peças que já vi ao longo da minha vida.
Concluindo, a peça “Torto andar do outro” explora com louvores a relação simbiótica entre o cordel e o teatro, difundindo a cultura popular do nordeste brasileiro não-resumida a Suassuna, proporcionando uma experiência única e envolvente ao público. Desejo profundamente que a Companhia Pão Doce regresse à São Paulo o quanto antes com essa e outras peças, ficando mais tempo em cartaz para que a qualidade do trabalho possa ser apreciada novamente. Finalizo com a letra da música “Torto andar do outro”, cujo tom devocional arrepiou cada parte do meu corpo, cuja purificação do “torto andar do outro / faz de mim algoz / Me faz dever ao devir / Temer o que há de vir”.
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