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Crítica de Teatro

Crítica: O torto andar do outro

Imagem: Instagram / Cia. Pão Doce

A palavra “Encantamento” é a que define cada momento da peça O torto andar do outro, que esteve em cartaz no SESC Avenida Paulista no final de semana do feriado de Tiradentes. A peça, baseada no cordel “Um conto bem contado” do autor mossoroense Antônio Francisco, teve o roteiro de Romero Oliveira, que pouco modificou do texto original. Logo, o público que assistiu à peça, nada perdeu do texto e muito usufruiu do primoroso trabalho teatral que a Companhia Pão Doce levou a ele.

Leia mais: Crítica: Bacurau

O cordel é uma forma popular típica da tradição literária e oral nordestina, cuja matéria são as histórias do cotidiano e as lendas populares. Quando unimos ele ao teatro, arte que aviva essa matéria e a expande para o público, de pronto lembramos as peças clássicas de Ariano Suassuna, como A farsa da boa preguiça, O casamento suspeitoso e O Auto da Compadecida, que ilustram essa articulação tanto no uso temático do corriqueiro e cômico quanto em relação a caracterização colorida de cenário e figurino. Entretanto, ouso dizer que a Companhia Pão Doce conseguiu dar um passo a mais e reconfigurar aquilo que a gente entendia por teatro nordestino.

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O enredo da peça nos conta que havia uma cidade encantada no sertão, onde vivia um povo desajustado que andava de lado como caranguejos, quando a notícia de uma criança andando de trás para frente se espalhou e provocou um alvoroço nas instituições do poder. A partir daí, o público acompanha os desdobramentos da busca do Estado por essa criança. O roteiro articula o mito do nascimento de Jesus com a discussão da repressão do “outro”, o que atinge seu auge em um monólogo que encaminha a peça para o seu final. Em linhas gerais, a reflexão que a peça propõe ao público é: Até onde iríamos para eliminar o “diferente” e o quão somos coniventes quando isso acontece?

O prefeito tirano, o capelão hipócrita, dona Maria e outros personagens foram vividos pelos atores Ligia Kiss, Mônica Danuta, Raull Davyson e Diogo Rocha, que demonstraram imensa versatilidade na atuação em mais de um papel da peça, dando vida aos personagens de forma intensa e convincente. Embora cada ator tenha seus méritos e elogios, a atuação de Ligia Kiss extrapola aquilo que se espera de uma atuação exemplar, tendo o potencial de roubar a cena com sua habilidade de oscilar entre o cômico e o desesperador com suas expressões faciais e voz. Em dado momento de sua atuação, me sensibilizei a ponto de quase chorar, assim como no monólogo-protesto de Mônica Danuta nos instantes finais da peça.

Além disso, as músicas, também presentes no teatro popular nordestino, dirigidas por Romero Oliveira, que também assinou o roteiro, complementam a narrativa e trazem um elemento extra de entretenimento e beleza estética. Esse elemento do trabalho merece destaque, porque as canções originais são incríveis e não emergem na peça como adorno vazio, algo presente mesmo em musicais renomados, mas são alocadas em momentos específicos do roteiro onde apenas a palavra falada não seria o suficiente para externalizar as emoções que determinadas cenas suscitam.

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Entretanto, é válido ressaltar que algumas falas são abafadas pela música, e embora isso não prejudique por completo a compreensão do espetáculo, tal acontecimento poderia ser evitado caso houvesse uma estrutura que comportasse melhor a acústica da peça. A vantagem é podermos ouvir as músicas, que foram disponibilizadas pelo grupo, com melhor qualidade no YouTube.

Um outro elemento importante é o cenário, que é bonito, atraente, e embora a história se passe em “Uma cidade encantada / Numa cuia pendurada / Num galho de jatobá”, conforme os versos do cordel já mencionado, a delimitação do espaço prejudica a movimentação dos atores, que já que devem andar de lado como caranguejo anda, algo mencionado e um dos mecanismos de conflito do enredo, tal ato pouco se viu, o que desarmoniza com a história. Ainda assim, o trabalho de iluminação está fantástico, colorido, vibrante e suave, cujas cores ambientam bem as emoções dos personagens e dialogam com o público em cada instante da apresentação. É um deleite aos olhos e tecnicamente superior às peças que já vi ao longo da minha vida.

Imagem: Fotografia / Arthur Macedo

Concluindo, a peça “Torto andar do outro” explora com louvores a relação simbiótica entre o cordel e o teatro, difundindo a cultura popular do nordeste brasileiro não-resumida a Suassuna, proporcionando uma experiência única e envolvente ao público. Desejo profundamente que a Companhia Pão Doce regresse à São Paulo o quanto antes com essa e outras peças, ficando mais tempo em cartaz para que a qualidade do trabalho possa ser apreciada novamente. Finalizo com a letra da música “Torto andar do outro”, cujo tom devocional arrepiou cada parte do meu corpo, cuja purificação do “torto andar do outro / faz de mim algoz / Me faz dever ao devir / Temer o que há de vir”.

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Crítica: O torto andar do outro
Sinopse
Existia no sertão do acolá, há vinte séculos atrás, onde andava o aruá, uma cidade encantada numa cuia, pendurada num galho de jatobá. Nela vivia um povo desajustado, valente, uns filhotes de mosquito parecidos com a gente, só que andavam de banda, feito caranguejo anda, ninguém dava um passo à frente. Tudo ia bem na visão daquela gente, quando correu a notícia que tinha um inocente com três anos de idade, num dos bairros da cidade, andando de trás pra frente.
Prós
Boas atuações
Música de qualidade
Iluminação
História sem lacunas
Contras
Cenário limita a movimentação dos atores (recurso que seria importante para o próprio enredo)
4.5
Nota
Written By

Letrólogo em formação e um apaixonado pelas artes, em especial a Literatura e o Teatro! Marvete de carteirinha, leitor de livros clássicos e duvidosos, amante declarado de teatros populares, cantor de chuveiro dos musicais da Broadway, maior visitante de exposições de SP e leitor constante de HQs de super-herois.

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