Logo no início de “Entre Facas e Segredos”, há um plano-detalhe da caneca usada por Harlan Thrombey (Christopher Plummer) para tomar seu café-da-manhã, em cuja superfície está escrito: “minha casa, minhas regras, meu café”. Num primeiro momento, a atenção dada pelo diretor Rian Johnson a essa frase parece ser apenas uma singela piada, um “quebra-gelo” entre ele e o público de seu novo filme. Entretanto, à medida que a trama de “Entre Facas e Segredos” se desenrola, fica claro que mais do que um mero gracejo, essa inscrição é o próprio leitmotiv, o tema de seu whodunit contemporâneo.
Obviamente, no princípio da narrativa, a casa, de fato, pertence a Harlan, um bem-sucedido escritor e editor de livros de mistério, cujo poder e influência se estendem para além de sua moradia. Apesar de reivindicarem uma grande autonomia pessoal, os irmãos Linda e Walt (Jamie Lee Curtis e Michael Shannon) são extremamente dependentes de seu pai e, principalmente, de sua fortuna. A primeira se autoproclama self-made woman, mas na verdade, como diz seu filho Ransom (Chris Evans) a certa altura do filme, seu negócio nasceu de um empréstimo de um milhão de dólares feito por Harlan; enquanto isso, Walt é o CEO da editora fundada por seu pai, um cargo, em tese, poderoso, mas que, em realidade, funciona apenas como fantoche para as vontades do renomado escritor.
Essa dependência também é expressa pela própria caracterização das personagens. O colar usado por Linda em sua primeira aparição remete a uma corrente de DNA, aludindo à sua vontade de ser a verdadeira herdeira de Harlan e a nova face do clã Thrombey, mantendo a imagem poderosa e, de certa forma, aristocrática da família. Por sua vez, a bengala de Walt materializa a sua dificuldade em ser independente, ao mesmo tempo em que, dependendo da situação, pode ser usada como arma de defesa de seus interesses. Dessa forma, Johnson estabelece a silenciosa disputa que ocorre dentre os mais ricos (as diferentes versões do parabéns a Harlan, por exemplo), mas também a sua união como classe quando vê-se ameaçada pelos mais pobres e minorias.
Essas tensões entre diferentes estratos da sociedade formam o conflito central de “Entre Facas e Segredos”, personificado pela oposição entre os Thrombey e a enfermeira latina Marta (Ana de Armas). Nesse sentido, o longa de Rian Johnson é nem um pouco sutil em suas observações e, principalmente, em seu posicionamento. Como forma de deixar bem claro a analogia entre o mistério que rege a trama ficcional e as rusgas étnico-sociais da “América trumpista”, o diretor chega a apresentar, por exemplo, as personagens discutindo abertamente os “campos de concentração” para imigrantes latinos implantados pelo atual presidente. Além disso, a relação cordial-mas-nem-tanto entre as personagens é escancarada através de falas como “Marta faz parte da família” que, por sua vez, são contraditas pelo desinteresse dos Thrombey em saber de qual país Marta efetivamente emigrou. Há também uma tentativa de caracterizar esse comportamento preconceituoso não como algo exclusivo de republicanos conservadores, mas como uma atitude inerente à cultura WASP (branca, anglo-saxã e protestante), através das figuras de Joni e Meg (Toni Collette e Katherine Langford), mãe e filha democratas, mas igualmente protetivas de seus privilégios.
A bem da verdade, a crítica formulada por Johnson é rasa e nem um pouco original, ainda mais para o público brasileiro (quantos filmes nacionais recentes apresentam essas mesmíssimas situações?). Além disso, a necessidade do diretor em localizar seu longa no “aqui e agora” por vezes soa forçada e, até mesmo, demasiadamente reiterativa. Entretanto, no geral, Johnson consegue evitar um clima condescendente, pois sabe que dificilmente conseguirá tratar do assunto com a devida profundidade em um whodunit, no qual as personagens são caracterizadas mais pelos arquétipos em que se encaixam do que necessariamente por traços genuinamente individuais. Logo, ao invés de se apresentar como um grande tratado sobre o estado da nação, “Entre Facas e Segredos” é eficiente exatamente porque quer ser mais do que mero entretenimento, mas também possui total noção de suas limitações.
Nesse sentido, o elenco também é de grande importância, perfeitamente capturando o espírito proposto pelo diretor. “Entre Facas e Segredos” é um daqueles filmes em que a palpável o quanto os atores estão se divertindo interpretando esses papeis que, apesar de não lhe conferirem grandes desafios, garantem bons momentos a praticamente todos os integrantes do extenso elenco. Dentre estes, vale destacar Daniel Craig como o detetive Benoit Blanc (o segundo sulista excêntrico que interpreta nessa década depois do ladrão de “Logan Lucky – Roubo em Família”) e, especialmente, Ana de Armas, que não só cumpre muito bem a missão de protagonizar o longa, como também consegue pôr Marta, de longe a personagem mais sóbria do roteiro, em pé de igualdade com todas as outras figuras, bem mais exageradas e cartunescas, da trama.
Em suma, “Entre Facas e Segredos” funciona, pois Rian Johnson sabe exatamente a casa onde está jogando e as regras que a regem.
Imagens e vídeo: Divulgação/Paris Filmes
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