O poder do mito na Cultura Pop ocidental e oriental
Talvez o termo jornada do herói já tenha esbarrado em seu caminho e, embora possa parecer reducionista à primeira vista, a maior parte das narrativas do ocidente costuma seguir essa fórmula, desde a antiguidade clássica até nos filmes da Disney, ou mesmo invadindo os animes/mangás. Nesse pequeno artigo vamos explorar um pouco sobre o que são as muitas jornadas do herói e como geração após geração a humanidade continua se encantando com suas fábulas.
“Quando os céus foram separados da terra”
“Há muito tempo, em uma galáxia muito, muito distante…” — é essa a introdução marcante dos filmes da saga “Star Wars“, mas com as devidas adaptações poderia bem ter saído de um relato tão antigo quanto a poeira. Um dos elementos da épica é o distanciamento entre o leitor e a obra, com heróis superpoderosos, contos sobre deuses, emprego da terceira pessoa e histórias que se passam em tempos imemoriais. Soa familiar? Por mais vago que seja, esse era um ponto em comum entre algumas das primeiras narrativas da humanidade ainda preservadas, como na “Ilíada” de Homero ou mesmo na “Épica de Gilgamesh“, mais antigo registro literário conservado.
Naqueles dias, naqueles remotos dias, / naquelas noites, naquelas distantes noites, / naqueles anos, naqueles remotíssimos anos, / naquele tempo o sábio que sabia falar destras palavras vivia na terra: / Shurúppak
Conselhos de Shuruppak, tradução de Jacyntho Lins Brandão, circa XXIX–XXVIII a.C.
Muita coisa mudou em milênios de storytelling, com novos gêneros com suas próprias características emergindo e desaparecendo. Se o herói pode ser um cidadão comum ou um pária, isso também pode dizer um pouco sobre o momento em que essas histórias foram escritas, afinal, nunca antes protagonistas deslocados e outsiders tiveram tanto espaço — haveria de ser algo sintomático, portanto.
Algo que não mudou foi essencialmente a predominância da estrutura da jornada do herói. Essa teoria proposta pelo professor Joseph Campbell divide as narrações em essencialmente três partes, mas que pode ser subdividida em categorias menores.
Uma história em três atos
A narrativa ocidental se dividir em três atos é quase que uma convenção não explícita: Partida, Desenvolvimento (com Clímax) e Retorno. Campbell destrincha isso em alguns passos que são tomados mesmo que na maioria das vezes inconscientemente. O exemplo escolhido para ilustrar foi “O Rei Leão” (1994), mas bem poderia se aplicar a quase qualquer outra obra.
O mundo comum: a história começa com Simba, um filhote de leão que está destinado a ser o futuro monarca da pedra do rei, sucedendo seu pai, Mufasa. Mas ele bem alerta sobre seus limites: até onde o Sol toca, ademais, não deve transpassar às terras escuras.
Chamado da aventura: seu tio Scar dá um golpe, mata Mufasa e expulsa Simba das Terras do Reino.
A recusa ao chamado: Simba não confronta Scar, mas foge para a selva.
O mentor: Um ponto em discussão aqui, afinal, Simba possui vários mentores que lhe iluminam o caminho. Para alguns o principal é Rafiki, outros Mufasa ou mesmo Timão e Pumba.
Cruzando a fronteira: Simba aceita o chamado e retorna às Terras do Rei.
Testes, Aliados e Inimigos: As muitas provações de Simba para além de acreditar em si mesmo incluem o grande confronto com Scar, que tenta manipular a opinião popular oferecendo-lhes a narrativa de que esse matou seu pai.
A crise: Simba e Scar entram em confronto direto meio ao ambiente infernal que o próprio criara.
Provação: Simba vence o confronto e atira o tio ao bando faminto de hienas, em um fim semelhante, mas ainda mais cruel, que a morte de seu pai.
Recompensa: Simba retorna à Pedra do Rei e se torna o novo monarca.
O retorno: As coisas retornam a sua ordem verdejante, com os animais/súditos antes fugidos a retornar.
Ressurreição: Não há uma ressurreição literal, mais na ordem semiótica e simbólica. Simba, outrora preenchido pelo pulsar de morte, ascende apoteoticamente ao ponto mais alto, assumindo o posto de seu pai.
Retorno com o elixir: Tal como no início do filme, Simba e Nala dão as boas vindas à nova membro da família real, Kiara, futura princesa, esperança e continuidade da monarquia.
Embora uma história que siga esse modelo não necessariamente contenha esses passos, ou até mescle alguns deles, é interessante observar como essa estrutura é tão onipresente e até escape aos olhos se bem colocada. Quando mau executada, por outro lado, as engrenagens da estrutura se fazem ressoar e o espectador pode ter a sensação desconfortável de estar diante de uma versão maçante de mais do mesmo. Ao fim e ao cabo, o objetivo pode ser se tornar o rei da selva, salvar a China ou ganhar pernas e viver entre os humanos, mas a maneira que a narrativa é apresentada é uma amostra de como depois de tantos séculos a forma do homem do ocidente contar histórias se mantém essencialmente a mesma.
Viagem ao Oriente
Outra estrutura preponderante é o Kishōtenketsu, nome popular japonês para estrutura tipicamente chinesa e também presente na cultura coreana. Consiste em quatro atos: introdução/ki (起), desenvolvimento/shō (承), virada/ten (転), conclusão/ketsu (結). O grande pulo do gato consiste no fato da virada estar mais comumente relacionada à uma releitura do kishō, ou seja: algo preexistente, do que uma nova situação que muda a sorte do herói.
A despeito do fato do Kishōtenketsu não traduzir bem a estrutura da maioria de animes e mangás, sendo uma estrutura tradicional e mais presente na literatura clássica, a influência pode ser observada em alguns animes como “Fairy Tail (2009)” e “Serviço de Entregas de Entregas da Kiki (1989)“. Vejamos um exemplo de análise através do primeiro:
Ki: São introduzidas as aventuras de Natsu e seus amigos da guilda de magos Fairy Tail. Natsu está em busca da seu pai desaparecido, o dragão Igneel.
Shō: As muitas errâncias do grupo.
Ten: Natsu descobre que na verdade que é um demônio criado a partir da memória do seu “irmão” e mago negro Zeref.
Ketsu: Após conciliar a nova informação no arco final e derrotar as criações do irmão, as aventuras da Fairy Tail terminam como começam, mas com o elemento da novidade do Ten (転).
Qual o melhor, afinal?
Não se trata bem de valorar um sistema sobre o outro. Evidentemente o sistema ocidental é o de maior dominância, porém mesmo na modernidade, narrativas que mesclem e busquem desconstruir esse padrão que pode dar a impressão de ter se tornado hegemônico não são nada difíceis de serem encontradas, basta olhar para os animes e mangás, com elementos muito mistos e próprios, ou no campeão do Oscar 2020, “Parasita“.
Conhecer como funcionam as engrenagens de um texto formalmente não é um pressuposto para se escrever uma grande história, e provavelmente são poucos os que fazem essa separação de caso pensado. Essas divisões, porém, podem servir de impulso para um autor desestimulado ou ainda como ferramenta crítica para compreender porque algo funciona ou não.
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