A peça “Fala das Profundezas” do Núcleo Negro de Pesquisa e Criação (NNPC) é um verdadeiro exemplo do que o teatro compromissado com a democracia é capaz de realizar. Primeira peça da “Trilogia dos Escombros”, com dramaturgia e direção de Gabriel Cândido, nela observamos um conflito de classes que se encontra com a tez da pele negra, o que possibilita uma ligação direta entre conflitos de raça e classe, uma metáfora à condição dos grupos destituídos de poder na lógica da colonização. Tais conflitos penetram com magnanimidade toda a montagem.
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A começar pelo título, a palavra “fala” permite três leituras possíveis: a) pode referir-se ao verbo da terceira pessoa do singular no presente do indicativo, marcando uma ação que ocorre no momento da fala de alguém (ele/ela/elu fala); b) pode referir-se ao verbo no imperativo afirmativo da segunda pessoa do singular, indicando uma ordem que deve ser atendida (fala tu/você); e c) se substantivada, o que ocorre com a inserção de um artigo (“a fala”), aponta a algo específico que deve ser pontuado. Por sua vez, “profundezas”, substantivo feminino no singular, indica a pluralidade daquilo que está associado a um lugar profundo, isto é, que não se encontra no raso. Uma leitura inicial do espetáculo, “Fala das profundezas”, portanto, parece indicar que os personagens (porque profundezas é plural) são convocados a falar sobre o que ocorre em seus interiores, quer seja enquanto lugar físico, quer seja enquanto profundidade moral e social. Somando-se o título ao nome do grupo, NNPC, fica pressuposto que o espetáculo mergulhará no cerne das questões raciais que o atravessam e o trará em sua estrutura.
A peça inicia apresentando um grupo de trabalhadores cavando o chão de terra enquanto conversam sobre uma profunda crise material e econômica que os atingem. A partir daí, cada personagem se coloca para solucionar essas crises de modo individual, o que se expande também para problemas pessoais e morais. Após apresentar o contexto do espetáculo, iniciada com uma clara referência a canção dos escravizados, as cenas são estruturadas pelo predomínio de pares de personagens, o que permite a visualização mais atenciosa das performances dos atores e das temáticas que o grupo se propôs a estudar. Ao final da peça, a mesma canção encerra o espetáculo, o que confere ao espetáculo um caráter circular.
A peça não apresenta um tempo histórico, fator irrelevante para a montagem, de modo que não saber o que aconteceu para os personagens estarem ali não atrapalha o ritmo do espetáculo, que progride sem recorrer a transgressões.
Quanto à cenografia, a estrutura utilizada foi de arena, onde o local do palco era preenchido com areia e com sacos de areia. Esse cenário era fixo e representava o local de trabalho das personagens, bem como o fundo de algo, o que se ressaltava nas falas dos personagens ao indicarem que existia o grupo “dos de cima”, enquanto por contraposição eles eram “os de baixo”. Essa espacialidade demarca algo similar a uma vala, e a metáfora proposta é o poder monetário e simbólico para “os de cima” e a ausência desse poder para “os de baixo”. É nesse profundo especializado que se conjuga também a ideia do “profundo de si”, em que os personagens expõem todas suas angústias e misérias.
O trabalho de som de André Papi reforça o tema da peça ao se apoiar, sobretudo, em paralelos sonoros. A diferença entre “os de cima” e “os de baixo”, em que os últimos são interpretados por atores e atrizes negros e negras, pressupõe que os primeiros são brancos, dado o predomínio que possuem. A presença “dos de cima” só ocorre como personagens extracênicos, cujas vozes em off sempre surgem confusas, constantes e em tom de superioridade em relação “aos de baixo”. A partir disso, surge um dos paralelos desenvolvidos por Papi, nesse caso como uma materialização dos discursos que envolvem os sujeitos negros e que, embora não seja possível distinguir com precisão, são persistentes e se impõem sobre suas falas.
Outro paralelo bem explorado pela sonoplastia é a incorporação, em uma das cenas, do ritmo que inicia ao som dos tambores e perpassa alguns ritmos até se converter no funk carioca. Conforme acontece essa progressão, os personagens dançam de modo cada vez mais frenético, o que alude aos bailes funk, ritmo tradicionalmente periférico, e finaliza com o som de tiros, interrompendo a dança e revelando os personagens assustados, clara crítica à violência policial que atravessa a marginalização desse ritmo e desses corpos. Dessa forma, o som opera como uma narrativa sonora, ao conseguir complementar o roteiro não como um recurso de adorno, mas como um mecanismo independente que compreendeu a proposta do que se apresentava ali.
Seja a cenografia ou a sonoplastia, é a partir do lugar de trabalho dos personagens que a história é apresentada ao público, de modo que a escolha de pares de personagens para assumirem ao palco joga para o extracena os conflitos que eles trarão à cena para discutir. Essa disposição entre cena/extracena confere ao espetáculo um aspecto desmontável, o que só não consegue ser totalmente devido à jornada narrativa de Thato e do par romântico Anele e Dafina, que conecta todas as partes do enredo.
Os figurinos de Carla Stela são camisas regatas bem abertas e monocromáticas em cinza, servindo como uniforme de trabalho para as personagens. Cinza é o símbolo do residual, aquilo que resta após o fim do fogo e, pela escatologia, é o símbolo da nulidade. Dessa forma, a adesão dessa cor nas roupas dos personagens intensifica suas identidades, pois eles são o resíduo daquela sociedade, que trabalham com um pó, a areia, que enquanto não é algo propriamente, é nulo, não tem uma função. Dessa forma, certamente esse aspecto corrobora com os personagens que tem suas identidades destituídas e se resumem apenas à sua função.
Quanto aos personagens, chamados de “os de baixo”, o elo comum entre suas relações é o ambiente de trabalho, em que desempenham a mesma função. A hierarquia dramática privilegia Thato e Anele, enquanto Dafina, Luísa e Franz são pouco desenvolvidos, o que não quer dizer que tenham cenas menos importantes. Em contrapartida, “os de cima”, embora detenham maior poder sobre eles, como foi dito, funcionam como seres incorpóreos, pois representam o discurso hegemônico. Um grande acerto da peça é não apontar textualmente que os personagens são negros, mas utilizar toda a estética da negritude em sua forma e conteúdo na formulação do ponto de vista que é oferecido ao espectador.
O personagem Thato, interpretado com perfeição por Deni Marquez, encarna o discurso meritocrático que é imposto socialmente. Em dado momento da peça, consegue subir de cargo e tal ascensão traz consigo novos privilégios, tal como o direito à alimentação, representada por uma marmita, algo que seus colegas não tinham. A partir dessa pouca melhora de condição social, Thato começa a repetir frases como “Se vocês se esforçarem, vocês conseguem. Eu me esforcei e consegui” e passa a agir com ar de superioridade em relação aos colegas, o que revela que ele se ofuscou com uma pequena parcela de privilégio. O que ele ignora é que a pequena ascensão não altera sua condição enquanto subordinado “aos de cima” e a reprodução dos discursos que ouve e repete o conferem outra voz, o que é questionado por Anele: “De onde está vindo essa voz? Ela não é sua”.
Em outro momento da peça, Luísa, vivida por Ellen de Paula, relata desesperada a Franz, Fábio Lopes, que seu filho foi tirado dela pelos “de cima”, e conversa sobre fazerem alguma coisa, o que ele inicialmente concorda, mas que ao desenrolar da conversa conclui que é uma ideia absurda, pois “Precisa de gente, precisa de mais gente”, mobilização que sabem que não acontecerá. A cena da mãe que perde o filho e nada pode fazer escancara algo simbólico e comum diante do conceito de “perda” para pessoas negras (drogas, cárcere, assassinato etc.), que é uma violência estrutural e sistemática. Nada é ou será feito. E é a partir dessa conclusão que a cena encerra, com um riso de nervoso assustador.
A peça teria aderido totalmente a estética afropessimista, não fosse o arco de Dafina, encenada por Maria Gabi, e Anele, interpretada por Tásia d’Paula. Logo no começo do espetáculo, Dafina se declara para Anele, que precisa de um tempo para pensar. Enquanto isso, é atravessada por diversas questões relacionadas a conseguir sair de suas condições. Ainda que discorde do comportamento de Thato, almeja sua posição, conversando com ele para alcança-la. Quando começa a dialogar com Dafina, Anele começa a reproduzir os discursos de Thato, de modo que Dafina questiona: “Se liga, o que é que você está falando? De vem essa voz?”, uma clara repetição do que Anele disse para Thato, o que marca que se tornou quem criticou. Tal comportamento apenas não é uma repetição cênica porque um possível amor a incentiva a colocar os pés no chão e respirar, para não perder sua identidade.
Apesar dessa quebra no fluxo narrativo, a ideia de que quando se aceita o amor ocorre a reafirmação da identidade, bem como o vínculo com a sua comunidade, acresce um desfecho esperançoso para a peça.
Cabe mencionar que o saco de areia que os personagens carregam, que representa um capital simbólico, é chamado de “importância”. Ao final, quando todo mundo tem “importância”, a areia, símbolo da perenidade, forma o chão em que todos, inclusive o público, podem caminhar sobre.
Por fim, é evidente que o Núcleo Negro de Pesquisa e Criação conseguiu, com muita qualidade e louvor, converter uma pesquisa sobre o discurso racial em uma excelente produção e experimento cênico. A peça demonstrou o potencial transformador do teatro compromissado em explorar as diversas nuances que moldam as profundezas da sociedade brasileira.
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